Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/08/2006
Os irmãos cineastas Paolo e Vittorio Taviani nunca fugiram ao rigor estilÃstico: têm misturado influências cênicas do neo-realismo italiano com um agudo senso de poesia visual-sonora no cinema. Mas não creio que antes deste As afinidades eletivas (L’affinitá elettive; 1996), uma co-produção Ãtalo-francesa cujo roteiro foi extraÃdo dum texto do alemão Johann Wolfgand Goethe, eles tenham chegado a uma tal precisão de movimentos cinematográficos.
A beleza do filme nasce, basicamente, da inventividade dos movimentos de câmara. Não, a câmara não procura chamar a atenção para si, não interrompe o fluxo narrativo, não disserta sobre o ato cinematográfico. O movimento de câmara em As afinidades eletivas é discreto, sutil; algumas vezes é preciso observar com um olho particularmente interessado nestas questões formais para se deliciar com o vaivém da câmara, imerso numa hipnose de cores e sons aparentemente fixos, puramente plásticos no sentido pictórico da expressão. É verdade: a câmara dos Taviani não tem o caráter o caráter desdramático, metalingüÃstico do cinema do francês Jean-Luc Godard, que em Duas ou três coisas que eu sei dela (1967) fazia a câmara (mergulhando em algumas folhas de árvores, mediante os dizeres roucos dum narrador-off) questionar-se sobre o que filmar. Sim, há pelo duas cenas em que a câmara dos Taviani executa movimentos instáveis diante de folhas de árvores, visualmente muito à semelhança de Godard, porém a precisão repara a instabilidade e o resultado é somente emoção plástica.
Em As afinidades eletivas há um narrador-off; é a voz do ator Jean Rocheford que emoldura as imagens dos Taviani com o texto de Goethe. Mas não há nada de literário, de exagerada verbalização nisto; como tudo no filme, este recurso narrativo é discreto e moderado.
O fascÃnio que emana da beleza do filme vem de algo não muito simples de obter em cinema. Falei nos movimentos de câmara, com eles me refiro tanto ao movimento em si do aparelho cinematográfico como à relação de espaço-tempo que se estabelece entre a câmara e os objetos cênicos, aà incluem-se as pessoas. Porém, os movimentos de câmara são completados pela sutileza das cores, a engenhosidade do guarda-roupa de época e o método interpretativo do elenco. Tudo isto, sem a cabeça do artista por trás, geraria a frieza técnica. O que os Taviani fazem é valer-se do senso plástico (milimétrico, sedutor) para expor a interioridade humana; tudo em cena parece obedecer a um andamento matemático, mas este andamento é desajustado pela intromissão de algo que vem de dentro do celulóide, os interstÃcios da pelÃcula.
Há uma seqüência particularmente elucidativa. Como todas, ela é feita de planos lentos, bonitos. A câmara se agita brevemente diante de algumas folhas, dá-se um pequeno travelling-para-a-frente, a câmara dá com um berço, a zoom faz visualizar em primeiro plano o berço e o bebê, há um corte para a face de Isabelle Hupert, a voz-off entra na faixa sonora, um movimento lateral da câmara vai encontrar o rosto de Marie Gillain, segue a voz-off, um corte para o primeiro plano do bebê no berço, a voz-off encerra a seqüência. O sentimento inicial da cena é de poesia e tudo acaba meio estranhamente, porque a voz-off conclui, sobre a imagem do bebê, que a criança é o produto monstruoso da troca de casais ocorrida numa determinada noite. Todo o conjunto de planos nos ajudam a elucidar o sistema estilÃstico que informa todo o filme. A seqüência que descrevi acima é formada de pequenos planos lentos, raros cortes, mobilidade suave alterna com quadros fixos, mas, por sua maneira de cortar e justapor os pedaços, apresenta-se ao espectador como se fosse um único plano-seqüência, ao modo daqueles inseridos nas fitas da nouvelle vague. Em As afinidades eletivas, diversamente do que ocorre nas realizações comerciais, não temos uma narrativa em que o plano que vemos está sempre esperando pelo plano que veremos para completar uma idéia ou emoção; os planos, neste filme dos Taviani, recuperam o prazer do plano em si, do plano-presente, onde não há necessidade de cortar senão de maneira inventiva, onde o movimento de câmara não é formalismo gratuito mas uma impiedosa busca de continuidade-descontinuidade (imagem e poesia) dos espaços cinematográficos.
Enfeixando este comentário, citarei dois clássicos contemporâneos em que a precisão dos movimentos de câmara foi tão inventiva quanto em As afinidades eletivas. Talvez ajude a compreender o processo desta quÃmica imagem-interioridade. Gritos e sussurros (1973), do sueco Ingmar Bergman, e Elisa, vida minha (1977), do espanhol Carlos Saura: a obscura contemplação da morte em movimentos circulares no primeiro e as panorâmicas e aproximações mnemônicas do segundo são o que há de mais comparável a este discreto e agudo agitar-se da câmara nos Taviani. (Eron Fagundes)