Crtica sobre o filme "Danton - O Processo da Revolução":

Edinho Pasquale
Danton - O Processo da Revolução Por Edinho Pasquale
| Data: 12/04/2006
Em seu livro Um cinema chamado desejo (1986) o cineasta polonês Andrzej Wajda revela: “Durante muito tempo alimentei o projeto de filmar Danton, após ter encenado a peça no teatro. Mas, somente depois que vi Gérard Depardieu no palco, foi que veio a revelação: eu tinha visto Danton em carne e osso! Naquela noite soube que devia rodar esse filme.” O espectador que dá com Danton, o processo da revolução (Danton; 1982) imediatamente concorda com seu diretor: Depardieu teve muitos papéis notáveis na tela, o ator francês é um capítulo à parte na história das interpretações cinematográficas; mas reconstituir o revolucionário e tribuno francês do século XVIII é seu trabalho mais característico. Depardieu é o próprio Danton, vital, populista, demagógico, individualista, egocêntrico, torrencialmente verborrágico. Na década de 80 se dizia que este filme de Wajda era profundamente dialético: ideologicamente dialético, que detinha uma contemporaneidade narrativa (contemporaneidade que permanece mais de duas décadas depois) que expunha a característica autofágica de todas as revoluções, algo já antevisto pelo profético Danton (profético, outro adjetivo, pois poucas personagens da história serão tão adjetiváveis quanto esta criatura); esteticamente dialético, pois, depois de se despedir das formas clássicas e barrocas de filmar em A terra prometida (1975), Wajda em Danton apurava a modernidade da decupagem cinematográfica que iniciara de maneira rigorosa em O homem de mármore (1976); e também interpretativamente dialético, pois o confronto entre Depardieu e o ator polonês Wojciech Pszoniak (enrijecido e adequado na pele de Robespierre) é um dos grandes duetos interpretativos da história do cinema.

George-Jacques Danton (1759-1794) foi um dos líderes da Revolução Francesa no momento inicial, criou o Tribunal Revolucionário e mandou executar na guilhotina muitos inimigos da revolução; assustado com o Terror, afastou-se dos revolucionários, especialmente de Maximilien-François-Marie-Isidore de Robespierre (1758-1794), que mandou Danton e alguns outros à guilhotina, em abril de 1794; sabe-se (isto não está no filme) que Robespierre viria a ser vítima do Terror, sendo guilhotinado alguns meses depois, em julho de 1794. Em suma, como previa Danton, a revolução se voltava contra seus filhos. E Wajda dá significado atualíssimo a toda essa parafernália histórica: seu filme em momento algum é um mofo do passado.

Da visão do filme há vinte e quatro anos o que batia mais fortemente em minha memória era a figura de falastrão de Danton, a cara de Depardieu avançando para a câmara, o eterno discurso populista e egocêntrico da personagem. Revendo agora em dvd, sua riqueza cinematográfica aumenta e alimenta a memória. Há um garoto que nas primeiras cenas recita para sua mãe os mandamentos revolucionários, obedecendo a uma rígida disciplina determinada por castigos maternos, ele está de pé nu no banho; nas imagens finais, durante a apresentação dos créditos, este mesmo garoto, conduzido pela mesma mãe, vai ter ao quarto onde um adoentado e atemorizado Robespierre ouve-o perplexo, está recitando as mesmas frases de fundo militar e patriótico.

De toda esta extraordinária reflexão de Wajda o sentimento que chega ao espectador é de que a revolução sempre deixa após si uma fuligem, a fuligem das revoluções, para usar duma imagem do parágrafo final de A ladeira da memória (1950), um dos mais belos romances do brasileiro José Geraldo Vieira. No início do filme de Wajda a face de Depardieu, entrevista com curiosidade pelo espectador pois Depardieu esconde sua personagem na obscuridade duma carruagem que trafega na neblina, esta face de Depardieu olha para o alto e vê a guilhotina, um plano médio do rosto de Dapardieu contrapõe-se a uma plano inclinado e distante da guilhotina: cinismo ou melancolia, esta cena já antecipa a fuligem que virá sob a cabeça decapitada de Danton. (Eon Fagundes)