Crítica sobre o filme "Casanova e a Revolução":

Eron Duarte Fagundes
Casanova e a Revolução Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/08/2006
Giovanni Giacomo Casanova (1725-1798) foi uma personagem histórica perseguida pelo cinema italiano; este indivíduo cujo nome no século XVIII fazia desmaiar senhoras de diversas faixas etárias assim como hoje acontece com certos galãs de cinema e televisão era na verdade um intelectual de seu tempo cujos atributos cerebrais eram relegados ao esquecimento em face de sua conhecida capacidade de seduzir as mulheres; Casanova foi visto no cinema por Luigi Comencini e Mario Monicelli, mas foi o gênio de Federico Fellini quem radicalizou a defasagem entre o exterior e o interior na figura deste escritor e célebre amante veneziano. Curiosamente, Fellini não chamou seu intérprete-fetiche, o italiano Marcello Mastroianni, para viver seu Casanova; preferiu o ator norte-americano Donald Sutherland, segundo Fellini uma face incaracterística e fácil de esquecer.

Casanova e a revolução (La nuit de Varennes; 1982; é também conhecido como A noite de Varennes ou Um mundo novo), um dos mais belos filmes do italiano Ettore Scola, não é propriamente uma narrativa que trata de Casanova; apanha a personagem na velhice, no seio de um mundo em transformação que ele já não entende, e vai tratar de outra coisa, as mudanças da época da Revolução Francesa. Mas talvez Casanova seja a figura mais persistente da curiosa caravana que Scola põe em cena nas estradas entre a Itália e a França quando estourou a queda da Bastilha e pouco antes de a família real fugir para Varennes e viver sua agonizante noite diante dum povo miserável, agitado e brutal. E Scola parece corrigir a ingratidão de Fellini: Marcello Mastroianni como um idoso Casanova está outra vez magnífico numa tela de cinema.

O começo e o fim de Casanova e a revolução mostram uma espécie de apresentação de feira (coisa que o cinema em suas origens foi e, para bem ou para mal, nunca deixou de ter um pouco esta atmosfera de espetáculo popularesco) onde um prestidigitador narra grandiloqüentemente em sua voz chamativa os acontecimentos da queda da Bastilha e da famosa noite da fuga do rei e sua família: esta encenação sarcástica e caricatural é uma torta metáfora do filme, que depois vai transformar as belas imagens do fotógrafo Armando Nannuzi numa alegoria sutil e densamente poética como Scola sabia fazer em seus melhores dias.

Casanova e a revolução é um filme histórico de estrada. A aguda percepção social alia-se à capacidade de revelação poética das personagens, demonstrando que neste filme Scola se situa mais próximo de um de seus mestres, o italiano Luchino Visconti, especialmente por um clima visual semelhante ao de Sedução da carne (1954). Scola vai acompanhar as andanças de alguns intelectuais europeus da época às vésperas das grandes mudanças trazidas pela Revolução Francesa; além do italiano Casanova, temos em cena o escritor inglês Thomas Paine, cuja irreverência se opõe ao conservadorismo do conquistador veneziano, e um autor francês cujo espírito libertino topa nas evocações de Casanova um companheiro; circulam em torno deles algumas mulheres, como uma aristocrata que teme os novos tempos e uma criatura que treme diante da figura mítica de Casanova. Scola cerca-se de atores de peso: o americano Harvey Keitel vive Paine, aparece a alemã Hanna Schygulla como a esquiva mulher da nobreza que se desentende com Paine para defender o rei. Jean-Louis Trintignant também tem suas aparições.

Neste lançamento da Versátil topamos com um final alternativo nos extras, onde Scola faz seu cenário de época saltar para uma imagem contemporânea, buscando uma associação entre as épocas, mais ou menos como o fazia o brasileiro Joaquim Pedro de Andrade em Os inconfidentes (1972).

O aparecimento simultâneo em dvd de Casanova e a revolução e Danton, o processo da revolução (1982), do polonês Andrzej Wajda, permite um estudo comparativo das abordagens dos cineastas: a emotividade italiana de Scola e a construção dialética de Wajda levam a caminhos diversos, sem contar que as intenções adjacentes de um e outro estabelecem profundas diferenças no resultado final destas duas obras-primas. E a comparação se enriquece quando capturamos na memória uma obra recente também ambientada na Revolução Francesa: A inglesa e o duque (2001), do francês Eric Rohmer. Rohmer faz um romance cinematográfico que, usando o pretexto revolucionário, fala do que mais lhe interessa, os sentimentos das pessoas. Não é mesmo um abismo? A melancolia temporal de Scola, a dialética política de Wajda e a metafísica psicológica de Rohmer: tudo serve à Revolução. (Eron Fagundes)