Crítica sobre o filme "Sonata de Outono":

Eron Duarte Fagundes
Sonata de Outono Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/08/2006
Em Sonata de outono (Höstsonaten; 1978) o cineasta sueco Ingmar Bergman radicaliza o cinema dos rostos. Uma das obras-primas de Bergman dos anos 50 chamava-se significativamente O rosto (1958; espera-se que a incansável Versátil não se esqueça deste filme em sua lista de lançamentos em dvd) e centrava a minúcia de sua imagem no rosto de um prestidigitador emudecido, mais especificamente em seus lábios que se recusavam a falar, assim como os lábios da atriz vivida por Liv Ullmann não diziam palavra em Pesona (1966). É o rosto madurão de Liv que torna a compor um dos elementos da linguagem cinematográfica de Bergman em Sonata de outono; Liv contracena com outra sueca, Ingrid Bergman, que fez carreira em Hollywood e depois foi amar e ser amada pelo diretor italiano Roberto Rossellini em alguns filmes que mudaram a face do cinema, e Ingmar vale-se com rigor e sensibilidade destes dois rostos de mulheres que estão entre os mais expressivos da história do cinema para fazer o que ele faz como ninguém, inventar a emoção cinematográfica. Apesar de seu contumaz cerebralismo, a emoção estética que vem de cada enquadramento de Bergman é gigantesca; é claro que para o espectador que considera como emoção somente aquele tipo de sentimento expelido pelas facilidades de Brian de Palma e de Steven Spielberg, realizadores norte-americanos fáceis de amar pelo público, este distanciamento nórdico que Bergman propõe inicialmente não se enquadra no conceito de emoção. São formas de cinema que não se comunicam, sem embargo de se valerem dos mesmos meios materiais para sua realização e para sua projeção. Cabe ao observador definir o que quer da vida e que categoria de emoção cinematográfica ele busca primordialmente.

Como o rosto parece ser só o que importa em Sonata de outono, dado o alto grau de despojamento dos cenários e da câmara (quase todos os planos são fixos e duros, quase todo o ambiente é vazio de adereços), cabe ver a notável beleza de algumas encenações; e compreendê-las: pela emoção. Quando Liv, vivendo a filha Eva, toca para Charlotte, a mãe interpretada por Ingrid, uma sonata de Chopin, é maravilhoso acompanhar as mutações emocionais do rosto de Ingrid que expressa toda a carga de paixão contida que uma mãe sueca sente diante da filha cujos cuidados afetivos ela trocou pela voracidade da carreira; um longo plano fixo mostra Ingrid em primeiro plano falando e Liv ouvindo-a enternecida num segundo plano, aí Bergman e suas intérpretes captam com agudez a submissão da personalidade da filha diante da personalidade da mãe, que é do que trata afinal Sonata de outono, entre recriminações e aproximações frustradas, como se fosse o inventário de um crime emocional ou uma narrativa policial dos sentimentos (lá pelas tantas a filha diz para a mãe que gente como ela, a mãe, deveria ser presa, para não espalhar o mal nos outros por aí).

A pianista Charlotte é uma descendente dos analfabetos sentimentais que Bergman tem caracterizado com profundidade única no cinema. Pessoas bem-sucedidas profissionalmente que sucumbem em suas relações pessoais ou familiares: conhecem muito de arte ou ciência mas se revelam ignorantes sobre os seres humanos. O professor Isak Borg, de Morangos silvestres (1957), é um médico laureado mas seus conhecimentos de medicina não lhe servem para resolver os relacionamentos com os seus, assim como Charlotte é mestra quando toca ou fala de Chopin mas é uma criança sem saber nenhum quando está diante de sua filha e das exprobrações filiais que lhe são endereçadas: seriam Chopin e a ciência médica mais fáceis de abarcar do que a psicologia real dos seres? Victor Sjöstrom no filme de 1957 é um rosto tão fulgurante quanto o de Ingrid na obra de 1978, embora o Bergman dos anos 50 ainda estivesse longe de enforcar seu estilo de filmar nas malhas do rosto humano. Há uma mãe e uma filha que se digladiam em tempo inteiro em Sonata de outono: as outras personagens, como o marido de Eva que abre o filme espiando sua esposa numa conversa amistosa com o espectador, o filho de Eva morto aos quatro anos por afogamento, a mana de Eva doente e paralítica e urrando como um bichinho num quarto, o empresário Paul que aparece silencioso na figura de Gunnar Björnstrand num trem no final, são acessórios deste filme em estrutura musical que Bergman edifica. No plano final de Através de um espelho (1961) Bergman expõe o problema filial na frase surpreendida do filho e no rosto perplexo deste mesmo filho no encerramento da cena; é como se Sonata de outono partisse do plano deste rosto e, multiplicando as variações desta face longínqua, desenvolvesse o assunto (mãe e filha, pai e filho) que em Através de um espelho era só um dos tópicos da realização e agora é tudo o que interessa.

As cores outonais da fotografia Sven Nykvist correspondem à forma de ver do filme, que gira em torno da maturidade (Eva) que contempla o inverno (Charlotte). Numa matéria da extinta Folha da Tarde, de Porto Alegre, de junho de 1980, o crítico Tuio Becker publicou uma matéria onde o professor Luís Olyntho Telles da Silva, então diretor da Maiêutica de Porto Alegre, analisava as estruturas musicais desta sonata de Bergman, evocando o allegro das descrições das personagens, o adágio das intromissões dos suaves flashbacks (especialmente o contato íntimo com os que morreram, o filho de Eva e o amante de Charlotte) e o rondó que encerra serena mas doloridamente (encena-se a dor sem que pareça dor, como queria a pianista que a filha tocasse ao piano os acordes de Chopin: um sentimento que não se exibisse como sentimento) as angústias humanas da sonata de Bergman. Sonata de outono, imprimindo-se uma alma de Chopin, tem um rigor de construção exultante; despoja-se das gorduras e vai direto ao ponto, opondo-se aos sentimentos vazados com mais facilidade em Cenas de um casamento (1974), cuja estrutura é mais aberta e interminável, poderia seguir para todo o sempre; Sonata de outono não é assim, tem seu tempo muito certo no espaço do filme como se só este espaço (e nunca outro) lhe pertencesse. Uma precisão cinematográfica, para citar outro grande filme que revi recentemente, parecida com aquela de Ajuste final (1990), de Joel e Ethan Coen.

Sabe-se que durante as filmagens de Sonata de outono na Noruega a atriz Ingrid Bergman teve uma de suas crises de câncer de mama, que começara a invadir seu corpo em 1974 e a mataria quatro anos depois de seu trabalho com Bergman; o desempenho-limite de Ingrid origina-se muito deste desespero que na tela ligou a vida de Ingrid aos problemas de Charlotte no drama escrito e encenado por Bergman. Em junho de 1980, quando esta obra-prima (uma obra-prima nasce sempre com incrível naturalidade da câmara de Bergman) foi exibida em Porto Alegre no cinema Victória, as opiniões se dividiram: Goida, crítico do jornal Zero Hora na época, ironizou o que ele chamava super-interpretação das atrizes e afirmou que não bastavam dois rostos para se ter um grande filme; os bergmanianos mais radicais nos indignamos. E é assim a vida cinematográfica: vive de declarações fortes e de reações igualmente fortes a estas declarações, principalmente quando se é muito jovem como eu era em 1980, precários vinte e quatro anos naquele remoto inverno. O fato é que nenhuma declaração altera o que o filme é, senão o filme que cada um vê de seu canto. Para mim, vinte e seis anos depois daquele primeiro e apaixonado contato, Sonata de outono permanece magnífico nos três movimentos que executa com seus rostos como se fossem notas que a câmara desnuda à maneira de um piano: as imagens como notações musicais, eis Sonata de outono. (Eron Fagundes)