Crítica sobre o filme "Hiroshima Meu Amor":

Eron Duarte Fagundes
Hiroshima Meu Amor Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 07/09/2006
A americana Pauline Kael debocha das reações exageradamente devotas que o público culto tem por Hiroshima, meu amor (Hiroshima, mon amour; 1959), onde o francês Alain Resnais, que queria ser antes um editor de filmes que um cineasta, erigiu as volúpias de seu cinema de memória, uma memória palpavelmente intelectual (diversa da memória emocional do espanhol Carlos Saura em Elisa, vida minha, 1977, e da memória psicanalítica do sueco Ingmar Bergman em Morangos silvestres, 1958). Pauline, a crítica norte-americana, reclama sobretudo do texto de Marguerite Duras, que utiliza o mecanismo da repetição para martelar o cérebro do espectador; tudo bem, diz Pauline, já entendi da primeira vez, vamos adiante, que mania que têm os escritores de achar que a profundidade ou a força lírica vêm do repetitivo; nesta pressa de ver em Resnais um prolongamento dos escritores que roteirizam seus filmes, Pauline não percebeu que a repetição de imagens e textos é antes um processo fílmico do cineasta que um jeito literário de Duras, como se verá em O ano passado em Marienbad (1961), com texto de Alain Robbe-Grillet, onde a linguagem freqüentativa (de imagens e palavras) é exacerbada ainda mais.

Compreendo Pauline: sua objetividade americana tem dificuldades com a subjetividade francesa, que é intelectual demais e às vezes parece mistificadora das coisas simples da vida. Demais, Hiroshima, como ocorreria com Marienbad, tem levado a tantas ilações elaboradas, filosóficas, profundíssimas, e se a gente desnuda ambos os filmes, os enigmas se esfacelam, num e noutro filme o que sobra mesmo é uma história de amor de memória e esquecimento: em Marienbad um homem se lembra dum encontro amoroso que a mulher o tempo inteiro está esquecendo; em Hiroshima as imagens iniciais mostram os corpos entrelaçados de dois amantes, depois as orações evocativas-over cruzam as lembranças de infância duma atriz francesa em Nevers com o contraponto cênico de um arquiteto japonês que questiona as relações desta francesa (contemporânea da guerra) com a fúria atômica de Hiroshima; novamente uma história de amor e esquecimento sem o grande enigma anunciado, ou desfeito pela passagem dos anos, mas tudo revolucionado pela habilidade de montar de Resnais: o cinema é o brinquedo do diretor.

Hiroshima, meu amor trata da memória e do esquecimento, como tratariam todos os filmes de Resnais que vieram depois (o melhor e mais completo filme de Resnais investe na memória biológica: Meu tio da América, 1980). E Hiroshima elege como fundo de sua memória as imagens mais famosamente terríveis do século XX, a bomba atômica que destruiu a cidade nipônica de Hiroshima: imagens que, esforçando-se por permanecer na memória, são daquelas que a humanidade gostaria também de esquecer.

Se na última fala de Hiroshima o homem diz para a mulher: “Tu és Neversâ€, talvez também o diretor pudesse exclamar para o espectador: “Tu és Hiroshima.†Hiroshima, o filme de Resnais e o episódio histórico que lhe serve de adubo cinematográfico, somos todos os homens que viveram no século XX. (Eron Fagundes)