Em 1984, Wim Wenders ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes com seu filme Paris, Texas, provavelmente sua obra-prima e que foi escrita justamente pelo dramaturgo e ator Sam Shepard, que recusou estrela-la. Agora eles voltaram a se encontrar com Shepard também como ator (e trazendo ainda sua esposa Jéssica Lange), neste Estrela Solitária (titulo infeliz que lembra 1) o estado do Texas que não tem nada a ver, se passa em Utah e Montana 2) o jogador Garrincha, o filme dele tinha esse nome, assim como o livro de Ruy Castro, quando vi pensei, ah esse já assisti).
E logicamente todos os crÃticos sem imaginação foram dizendo o óbvio, que o outro era melhor e malando este aqui. Não é bem assim. Melhor nem comparar apesar de algumas semelhanças também temáticas (lá um homem e uma criança procuram pela mulher e mãe desaparecida, aqui é um astro de cinema de faroestes, já meio decadente, meio Clint Eastwood, mas sem semelhanças no mundo atual já que não se fazem mais westerns como aquele que esta sendo produzido ali). Enfim, o ponto de partida parece algum fato real que Wenders ouvi de algum veterano diretor que conheceu, tipo John Ford. E pediu para Sam expandir. Assim, o cowboy chamado Howard Spence se enche da filmagem e foge dali, onde esta no deserto de Utah e vai procurar a mãe que não encontra há muitos anos e vive perto dali (Eva Marie Saint). Ela menciona o fato de que ele deve ter um filho já adulto em Montana e ele parte para Butte, procurando a ex-namorada (Jessica) que não quer mais nada com ele. Mas o filho realmente existe (Mann), que é músico e o recebe mal (custa a crer que ele não saberia quem é , já que no bar da mãe tem um pôster e fotos de Howard) , Enfim, de quebra tem também uma outra moça (a ótima Sarah Polley) que pode ser sua filha (essa relação é melhor tratada, de forma bem mais sutil).
Não é melodrama e as situações são tratadas de forma sutis e por vezes ate engraçadas. Não se fogem de clichês (todo filme atual tem alguém quebrando sua casa de raiva aqui ao menos a situação é usada dramaticamente depois). Mas se leva muito tempo na fase expositiva, com um personagem que é desagradável e antipático, sem qualidades redentoras (ele bebe, dorme com todas as mulheres, não liga para a mãe, nem para ninguém) o filme melhora muito numa cena espetacular tecnicamente. É na discussão na rua, com os moveis quando quase ao final passa uma nuvem e a luminosidade muda brutalmente. Em vez de refazer Wenders resolveu deixar, mostrar a origem daquilo (o céu chumbo) e ir adiante com a seqüência, que coloca Sam sentando no sofá, esperando o temo passar, ou seja, a noite chegando, tudo muito bonito e poético.
Dali em diante chegam os conflitos e o filme melhora, graças a algumas grandes figuras, como Tim Roth que dá ironia ao personagem do detetive do Seguro que vem atrás dele (o dialogo no carro onde ele diz que não houve radio porque as noticias são as mesmas, e exemplifica, como As Cruzadas, a Conquista do México etc). Concorrente em Cannes ano passado, o filme ganhou melhor fotografia no European Film Award, onde teve mais três indicações. Custou 11 milhões e estreou em abril nos EUA em poucas salas e nenhum sucesso. As canções interessantes são de T-Bone Burnett mas a que da titulo original do filme é de Bono e Andréa Carr. Ou seja, um filme interessante apesar de tudo (principalmente assistindo ele fora de Festival). (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 4 de maio de 2006)
.O amor do cineasta alemão Wim Wenders se expressa também nas aproximações temáticas que ele faz em seus filmes. Em Estrela solitária (Don’t come knocking; 2005) o que aparece em cena é a figura de um veterano ator de faroestes que um belo dia abandona o set de filmagem, bagunçando com o esquema certinho duma produção tÃpica de Hollywood; a peregrinação deste ator de ficção em busca da cidadezinha onde nasceu e onde viveu seus anos iniciais (e onde ainda mora sua idosa mãe) e depois no encalço de dois supostos filhos (um roqueiro tão temperamental quanto o ator que desapareceu das filmagens e uma garota que escorre sinuosamente pela trama), esta peregrinação vai servir para que Wenders revisite o western, seus cenários, seus sÃmbolos, de maneira mais profunda e criativa (não esqueçamos: Wenders é um gênio do cinema) que aquela do chinês Ang Lee em O segredo de Brokeback Mountain (2005) ou mesmo do belo filme do norte-americano Tommy Lee Jones, Três enterros (2005); fascinado pela raiz americana de filmar, Wenders nunca é submisso: olha de frente os mitos que alimentam seu cinema.
Na verdade, Wenders é um diretor em busca do cinema. Sua aproximação do tema de filmar não é isenta de uma emoção que contém uma nostalgia cerebral. Em seu documentário Nick’s movie (1980) a perversidade estética de Wenders debruçou-se sobre os dias cancerosos de um de seus mestres, o realizador norte-americano Nicholas Ray. Em Tokyo-Ga (1985), outro documentário, a câmara de Wenders percorreu ambientações e pessoas da capital nipônica para topar a alma filmada por outro de seus professores de cinema, o japonês Yasujiro Ozu. Em O fim da violência (1997), uma narrativa ficcional, Wenders utiliza a figura fÃsica decrépita de outra sobra do passado do cinema, o diretor norte-americano Samuel Fuller (este mesmo diretor fora visto também em O estado das coisas, 1982): um plano fixo da expressão doentia e desesperada de Fuller, que estava à morte durante as filmagens, é uma das coisas mais contundentes de O fim da violência. Como bom alemão, Wenders sempre hesitou, mesmo em seus trabalhos de ficção, entre o documentário e o que seria uma história inventada. Um de seus filmes menos citados, Caderno de notas sobre roupas e cidades (1989), rompe muito destas fronteiras entre o documental e o ficcional, permitindo uma comparação com outro alemão, Alexander Kluge, especialmente de O poder dos sentimentos (1983): tomar o cinema como um itinerário desgarrado, fragmentar tudo mas manter a força duma imagem constante. De certa maneira, Estrela solitária edita de novo esta magia do cinema de Wenders: colocar o cinema em estilhaços para remontar criando um novo conjunto.
A personagem vivida por Sam Shepard (também roteirista do filme, refazendo com Wenders a dupla de Paris, Texas, 1984) é um dos muitos seres desgarrados que cruzam as narrativas de Wenders, desde o vagabundo cinemanÃaco de sua primeira obra-prima, Com o passar do tempo (1976). Falta o solo nos pés das personagens centrais dos filmes de Wenders; apesar dos grandes cenários naturais abertos que convidam a um enraizamento interiorano, as criaturas de Wenders são sem-famÃlia que buscam a esposa perdida (Paris, Texas), os filhos esquecidos ou ignorados ou a mãe longÃnqua no caso de Estrela solitária. Nesta busca dos filhos Wenders não abdica do frenesi melodramático; e o faz com sua aguda sensibilidade européia: não frustra seus admiradores com concessões hollywoodianas.
De uma maneira diversa daquela do francês Jean-Luc Godard, o alemão Wenders erige o cinema como matéria de seus filmes. Onde Godard arma um cáustico jogo de brincar, Wenders expõe em imagens uma partitura nostálgica: Ozu, Ray, Fuller, os mitos do faroeste e a ressurreição de grandes atrizes que hoje em dia eram só memória. Uma memória que a genialidade de Wenders vai tornando viva. (Eron Fagundes)