Crítica sobre o filme "Céu de Lisboa":

Eron Duarte Fagundes
Céu de Lisboa Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 09/11/2006
Não é novidade que o tema eterno do alemão Wim Wenders é o próprio cinema, o mundo interno e à volta das imagens em movimento. Cada plano de Wenders é uma reflexão sobre o estilo de filmar, uma busca de fugir ao trivial da montagem cinematográfica.

Em O céu de Lisboa (Lisbon story; 1994) Wenders refaz a dialética visual da existência-ausência que está no centro de muitos de seus filmes. Em Com o passar do tempo (1976) o desaparecimento (ausência) dos cinemas de interior é combatido pela pertinácia itinerante (existência) do operador de projeção que é protagonista da narrativa. Em Asas do desejo (1987) os anjos (ausentes do universo terra a terra) dão seu toque mágico (presença) aos deslumbramentos visuais de Wenders. Em Paris, Texas (1984) a personagem de Harry Dean Stanton (presença) se larga na estrada à procura de sua desaparecida amada vivida por Nastassia Kinski (ausência). Já em O céu de Lisboa a presença é conduzida pela figura do técnico de som de cinema interpretado por Rüdiger Vogler quase vinte anos depois de a câmara de Wenders tê-lo surpreendido defecando numa despojada seqüência de Com o passar do tempo; a ausência é o desaparecimento do diretor dum filme sobre Lisboa, incessantemente perseguido pelo técnico de som, para, ao final, quando o encontra, descobrir que o filme em que ele, técnico sonoro, em busca dos melhores sons lisboetas, estava trabalhando, já não interessa ao estranho diretor.

No estágio das preocupações cinematográficas do cineasta em 1994, Wenders não abdica dum humor cáustico relativamente à validade do cinema. Na verdade, girando eternamente em torno de seu objeto de culto, o cinema, Wenders é um rigoroso experimentador das imagens em movimento, insatisfeito, iconoclasta, exigente para com o espectador. Mais que tudo, Wenders é um sonhador, um colecionador de metáforas visuais e verbais que o indicam como um espírito que gostaria que o cinema fosse ainda mais longe do que parece permitirem suas veleidades físicas.

Algumas destas metáforas. O diretor desaparecido fala: queria um olhar virgem, inocente, ninguém mais selecionaria o que filmar, filma-se sem olhar pelo visor da câmara, não se revela o filme a não ser daqui a muitos anos para uma geração que veja o mundo com olhos muito diferentes dos contemporâneos. É viável isto? Não levemos ao pé da letra, comemos a colocação como função poética, uma provocação ao absurdo tão desorientadora quanto aquela do cineasta cego que dá instruções a seu assistente em O ataque do presente contra o restante do tempo (1985), de outro alemão, Alexander Kluge (só os alemães logram imaginar coisas tão sublimes). Aproximação da ciência à poesia: “A teoria dos binômios de Newton é tão bela quanto a Vênus de Milo.†(Outra questão alemã: aplicam uma certa racionalidade científica à sensibilidade da arte). Num discurso da breve aparição do diretor português Manoel de Oliveira, este se refere a este trauma da reflexão filosófica em que deparamos com um mundo relativo (este instante captado pela película realmente existiu? Existirá o mundo objetivo fora da memória?), mas somos obrigados a ter os pés na terra e a uma alimentação diária.

O céu de Lisboa provocativamente afirma que as imagens são lixo e se pergunta se existirá mesmo alguma Lisboa fora de um olhar, de um filme, de um texto, de uma qualquer coisa que revele a presença do imaginário humano e a ausência da objetividade material. Projetado como um documentário de Lisboa, O céu de Lisboa se desvia para experimentações outras diante do ponto de vista adotado, a impossibilidade de documentar.

(Este texto foi escrito em 29.12.95 e faz parte de meus arquivos de inéditos e vão sendo aqui publicados conforme os lançamentos dos filmes em DVD surgem no mercado). (Eron Fagundes)