Antes da apresentação dos créditos iniciais, acompanhando a escuridão da tela, algumas vozes dos bastidores duma campanha polÃtica que podem ser confundidas com cenas de algum filme antecedendo o programa principal se o espectador não identificar a voz de Lula ou desavisadamente esquecer o tema do filme ao qual vai assistir. No começo da pelÃcula a voz-over do realizador, João Moreira Salles (para o espectador que não conhece sua voz, é simplesmente um narrador-auxiliar da câmara, comum em certos documentários brasileiros de antigamente mas que nesta realização praticamente se ausenta depois da intromissão inicial), informa sobre o processo de filmagem: rodou muita coisa da campanha polÃtica de Lula, mas, ao escolher o material na montagem, o cineasta privilegiou mais as cenas privadas que as cenas públicas do futuro presidente: reuniões fechadas, seqüências em aeroportos e aviões, passagens por hotéis; segundo Salles, seu filme Entreatos (2004) é um dos dois ou três que o material bruto poderia gerar. Ou seja, o cinema é uma questão de montagem.
O observador habitual se preocupa com entender o homem e o polÃtico Lula nas imagens de Entreatos. Visando a isto, atenta em suas palavras, em suas brincadeiras, em suas descontrações, em suas tensões, em suas exacerbações humanas. Quer saber como o ex-operário do ABC paulista se converteu num polÃtico de projeção internacional. Mas o filme de Salles, para quem quer observar cinema, não é uma realização polÃtica, não dá definições de aula: é um exercÃcio de corte e montagem. Neste aspecto são caracterÃsticas duas longas seqüências em que Lula tergiversa no interior de um avião. Sua habitual salada de frutas ideológica na verdade pouco importa. O que interessa é a extensa e intensa passividade da câmara diante de seu observador, os cortes são poucos, inesperados e quase não alteram o ângulo, tudo tão sutilmente feito que a seqüência se assemelha toda ela a um único plano, o plano-seqüência desabafo.
Outra cena exemplar do método de trabalho de Salles é aquela em que Lula está sendo barbeado por seu barbeiro ao mesmo tempo em que dá uma entrevista (um discurso?) por telefone celular a uma rádio de Porto Alegre. O embevecimento da câmara, a naturalidade do entrelaçamento do cotidiano do indivÃduo com a sua vida pública contagiam o espectador.
Diretor de Nélson Freire (2003), talvez ainda falte a João Moreira Salles a centelha de invenção de Eduardo Coutinho, de quem ele é admirador, como se vê pelo prefácio que Salles escreveu para o livro O documentário de Eduardo Coutinho (2004), de Consuelo Lins. “É surpreendente que essa disciplina extrema não seja sinônimo de álgebra. O rigor de Coutinho não é a do engenheiro, mas a do jazzista.†(Salles). Em Entreatos a câmara de Salles parece mais solta, mais natural que em Nélson Freire, tornando seu rigor formal mais desabusado e mais emotivo. (Eron Fagundes)