Crítica sobre o filme "Alemanha, Ano Zero":

Eron Duarte Fagundes
Alemanha, Ano Zero Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 26/01/2007
Em Alemanha, ano zero (Germania, anno zero; 1947) o cineasta italiano Roberto Rossellini prossegue a crônica da tragédia moral do indivíduo europeu diante da quebra de valores que representaram os conflitos bélicos da primeira metade do século que não há muito chegou ao fim. Quem conduz a enxuta e contundente narrativa ético-política do filme de Rossellini é a personagem do menino Edmundo; ele seria o prolongamento daquela criança que em Paisà (1946), num cenário destroçado pela guerra e diante dos cadáveres de seus pais, se punha a berrar, impotente.

O cenário por onde transita Edmundo é igualmente destroçado; a guerra acabou, mas seus efeitos são devastadores: o desemprego, a fome, a solidariedade entre os homens despencando-se. O menino Edmundo tem de atirar-se a pequenas vendas e trocas de objetos para ajudar a sustentar sua família, entre eles um velho pai doente. Rossellini é rigorosamente crítico e documental em sua visão do mundo europeu do pós-guerra; embora ambiente sua realização em Berlim, os diálogos de seu filme são em italiano, e a naturalidade de encenação não se perde com esta alteração lingüística. Os episódios narrados poderiam passar-se em qualquer grande metrópole destruída pelas bombas. É que a realidade em Berlim, diante da derrota nazista, foi mais cruel.

Tão impotente quanto a criança de Paisà, Edmundo perde-se em sua confusão moral. O universo que o cerca e oprime, não há saída para a miséria (física e espiritual) generalizada, suas andanças pelos pedaços de cidade com que topa refletem o vazio das vidas de então, como se fosse um filme de Michelangelo Antonioni com um sentido mais político. Edmundo perde-se, deixa-se domar pela perversidade moral. Os sofrimentos de seu velho pai doente e o sofrimento da família que é obrigada a dividir as migalhas de alimentação com o velho inútil fazem com que Edmundo, num gesto entre desesperançado e cínico, envenene o pai.

Após a morte do pai, o menino vaga por uma Berlim em sombras, às escuras. Até que, subindo a um muro semidestruído, se joga nos destroços do chão, suicidando-se. Num dos filmes seguintes de Rossellini, Europa 51 (1952), um menino burguês matava-se na primeira quarta parte da narrativa, desencadeando o processo de revolução íntima de sua mãe, matava-se por falta de afeto. Em Alemanha, ano zero Edmundo suicida-se asfixiado pela miséria física (a fome sem saída) e pela miséria moral (ter matado seu próprio pai). Seu suicídio desencadeia a revolução íntima do espectador. De certa maneira, o menino de Europa 51 prolonga, na reflexão rosselliniana, o Edmundo de Alemanha, ano zero. (Eron Fagundes)