Crtica sobre o filme "Pequena Órfã, A":

Eron Duarte Fagundes
Pequena Órfã, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 11/03/2007
Se nos anos 70 o cinema social e dramaticamente empenhado da italiana Lina Wertmuller foi assoprado por bons ventos críticos em películas como Mimi metalúrgico (1972) e Pasqualino sete belezas (1975), nos anos 80 se dizia que a realizadora entrara numa decadência irreversível; na verdade, seu cinema desapareceu da circulação internacional e o que se pode avaliar a respeito é de ouvir dizer ou ler. Assim, dar com A pequena órfã (Francesca e Nunziata; 2001) é uma surpresa e permite constatar que na velhice talvez la signora Wertmuller tenha recuperado o vigor italiano de seus melhores anos; o filme é esplendoroso em seu tratamento de imagens desde o início, misturando o rigor nobre de composição do universo da aristocrata vivido por Sofia Loren com o desabusado jeito peninsular de mulheres “ralando” num pastifício; tudo enfeixado, um prato cheio para ser devorado pelo espectador.

Sabe-se que Lina foi assistente de direção de Federico Fellini em Oito e meio (1963), e que esta influência das travessuras visuais de Fellini nunca se despegou das encenações de Lina. Toda a concepção de cena de A pequena órfã lembra muito esta dança grotesca, extrovertida e divertida, que Fellini erigiu à categoria de arte; desde os movimentos iniciais da fita, a sátira social de Lina não obstrui os caminhos do lirismo circense felliniano, mas tudo é convertido em formas muito pessoais de filmar, nunca pasteurizações comerciais como muitas vezes vemos.

É curiosa a maneira como Lina vai transformando o aparente paraíso inicial da família italiana (um casal que se ama, filhos bem criados, a adoção duma órfã, tudo favorecido pela alegria da maneira como as imagens são fotografadas) num universo de densos conflitos humanos (as contradições emocionais da matriarca, o amor irrealizado da órfã e de um dos irmãos de criação, o suicídio tentado do marido da empresária de massas). Mão certeira para a emoção, como já se viu há tantos anos num filme hoje pouco referido, Amor e ciúme (1978), Lina tem o domínio das partes melodramáticas de sua narrativa, como se vê naquele diálogo final da mãe-massa com sua filha adotiva. E este final antológico é também o tributo que o cinema pode fazer a uma das maiores atrizes de sua história, a italiana Sofia Loren, que conduz sua personagem por mutações etárias e variações de maquiagens com a engenhosidade duma intérprete soberana: creio que neste dueto final com a jovem Claudia Gerini, loiramente bonita e sensível, esta é introjetada na emoção da personagem porque antes foi devassada pela emoção de ver como uma antiga estrela ainda tem garra suficiente para elevar uma cena perigosa a uma profundidade ímpar. Sei que Giancarlo Giannini é outro monstro que não posso deixar de reverenciar; mas ajoelho-me diante de Sofia, sua inventividade como intérprete, este final de filme galopante que ela nos proporciona. (Eron Fagundes)