Crítica sobre o filme "Santo Agostinho":

Eron Duarte Fagundes
Santo Agostinho Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/03/2007
Ao assistirmos em dvd, lançamento da Versátil, à cinebiografia Santo Agostinho (Agostino d’Iponna; 1972), um mergulho do diretor de cinema italiano Roberto Rossellini no tenso universo social do século IV onde figura do pensador cristão Aurélio Agustinho foi um sinalizador de rumos e um centro inevitável, ficamos impressionados com a atualidade do cinema de Rossellini e a forma extremamente veraz com que ele recria um mundo ainda hoje de espantosa atualidade, as discussões religiosas, metafísicas e sociológicas do século que determinou a ascensão básica do cristianismo no Ocidente. Rossellini é o maior cineasta que o mundo conheceu e a criatividade e o rigor de detalhes com que recria um tempo, associando-o a seu tempo e fazendo com que, três décadas depois da realização do filme, as inquietações permaneçam atuais, são demonstrações inabaláveis de seu gênio. Questões como a corrupção, a violência das cidades e das estradas, as relações entre os sentidos e o espírito, a desordem são de todas as épocas e locais, mas, nas mãos de outros realizadores, poderiam ter um ar exótico-histórico que as tornasse datadas, mas Rossellini dá a tudo isto a eternidade de seu poder de filmar.

Santo Agostinho pertence à fase final da filmografia de Rossellini e seu didatismo religioso é tão exemplar quanto capaz de provocar um êxtase místico no espectador; fugindo do hedonismo artístico de suas obras-primas dos anos 50, Europa 51 (1952) e Viagem à Itália (1953), Rossellini parte para um rigor e um despojamento absolutos, ascético como uma primitiva missa cristã, esteticamente depurado em seus cenários que todavia não abdicam das objetivas reconstituições em cartões pintados. Rossellini visita a vida e os discursos de Agostinho como se olhando no espelho: as perturbações éticas da vida de Rossellini se casam com aquilo que viveu Agostinho; dois espíritos que se comunicam por algumas identidades, e Santo Agostinho acaba sendo um pouco um Santo Rossellini, uma quase-autobiografia, assim como Wittgenstein (1992) poderia chamar-se Jarman.

Na grande peregrinação de Agostinho, surgem discussões filosóficas e que enveredam para batalhas sociais e jurídicas com os maniqueus e especialmente com os donatistas (seguidores do bispo Donato, cujo ponto de vista mais radical é combatido pelo sinuoso pensamento de Agostinho). Mas a generosidade de Agostinho, atrelada à argumentação e rejeitando a imposição autoritária e menos ainda pela violência, é uma lição democrática poucas vezes seguida, embora muito louvada e assumida. Assim como Santo Agostinho, o filme de Rossellini, é uma aula de cinema de que raramente desfrutamos.

Entre as muitas curiosidades desta peregrinação, surge, em Santo Agostinho, a decisão da corte de Ravena, que impõe o cristianismo e persegue os donatistas, de radicais virados em maltrapilhos. Curiosidade: quero lembrar que Ravena, citação histórica em Rossellini, é a cidade de mutações industriais, onde outro italiano, Michelangelo Antonioni, rodou seu O deserto vermelho (1963). (Eron Fagundes)