Crítica sobre o filme "Incompreendidos, Os":

Eron Duarte Fagundes
Incompreendidos, Os Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 05/07/2007
Durante a apresentação dos créditos iniciais de Os incompreendidos (Les 400 coups; 1959), o primeiro e também o mais belo filme do realizador francês François Truffaut, uma seqüência de travellings intercalados vai permitir à câmara percorrer Paris, mais uma Paris suburbana do que verdadeiramente a metrópole das luzes; são os cenários onde a história amarga e descarnada do menino Antoine Doinel se passará ao longo da narrativa. A ação vertiginosa do travelling lateral é interrompida quando se esgotam os créditos, e a câmara se detém sobre os gestos mínimos dum garoto, numa classe de sala de aula. A oposição entre a matreirice dos alunos e a dureza arcaica do professor é estabelecida logo de cara.

No filme, quando Doinel logra fugir do reformatório em que o lançaram seus pais, novamente o elemento sintático do travelling é utilizado com frescor por Truffaut: é quase um travelling ininterrupto o que acompanha a corrida de Doinel, no rumo do mato para chegar ao mar onde sua história se concluirá no tempo do filme, que é também um hino à transição entre a infância e a adolescência; o travelling apresenta uma fusão e depois no desfecho surge um corte quando o garoto está chegando à beira-mar; a finalização se dá pelo uso duma panorâmica que se desloca para ver Doinel molhar seus pés nas ondas marinhas e uma súbita aproximação de câmara que capta o rosto nervoso e perplexo da pequena e solitária personagem.

Sabe-se que Os incompreendidos, cuja dedicatória ao pai cinematográfico de Truffaut, o crítico André Bazin, falecido aos 40 anos em 1958, é reveladora, sabe-se que o filme contém muito de autobiográfico. A infância tumultuada e delinqüente de Doinel foi a infância do próprio cineasta; aquela cena da idolatria ao romancista francês Honoré de Balzac, onde um retrato do escritor é reverenciado como um santo diante duma vela que em seguida causa um pequeno incêndio às pressas apagado, vai indicar uma das influências do cinema do cotidiano de Truffaut: sua afeição pelas crônicas romanescas de Balzac.

Entre a família (a luta conjugal dos pais, com a mãe leviana e o pai irritadiço), a escola (o professor durão) e a repressão policial, o garoto se perde nos caminhos da vida, sem indicar que poderá um dia levantar-se, como levantou-se Truffaut, graças a Bazin que o trouxe inicialmente para o jornalismo cinematográfico. O pequeno ator Jean-Pierre Léaud seria depois personagem de vários filmes de Truffaut, caracterizando-se como um alter ego do diretor, e faria carreira também em outros filmes não dirigidos por seu mentor inicial.

Já em Os incompreendidos, e antes ainda, no curta-metragem Os pivetes (1957), Truffaut abria ao mundo sua sensibilidade para dirigir atores infantis. É esta habilidade que faria com que o famoso cineasta norte-americano Steven Spielberg o colocasse no elenco de Contatos imediatos do terceiro grau (1977), visando a valer-se de sua experiência na direção das crianças que habitariam esta superprodução ianque de ficção científica. (Eron Fagundes)