Crítica sobre o filme "Aurora":

Eron Duarte Fagundes
Aurora Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 15/08/2007
Do diretor alemão Friedrich Wilhelm Murnau escreve a ensaísta germânica Lotte H. Eisner: “Em Friedrich Wilhelm Murnau, o maior diretor que os alemães jamais tiveram, a visão cinematográfica nunca é o resultado apenas da tentativa de estilização do cenário. Ele criou as imagens mais estupendas, mais arrebatadoras da tela alemã.†Aurora (1927), filme rodado nos Estados Unidos e cujo roteiro foi extraído dum livro de Herman Sudermann, é um dos títulos que justificam o encômio altissonante da historiadora.

De certa maneira, Aurora plantou as bases de um tipo de melodrama que depois Hollywood pasteurizaria ao infinito, criando as mais toscas corruptelas fílmicas. E Aurora é muitas coisas, mas nunca lhe caberia o adjetivo tosco: é agudo como uma lâmina afiada e penetra no interior do celulóide como poucas películas fizeram. Aurora conta uma história de culpa e adultério vertendo uma certa moral cristã familiar; a defesa dos laços familiares que Hollywood tem defendido com rudes emoções; mas Murnau é suficientemente lírico e profundo para se aproximar do espiritualismo do francês Robert Bresson e se afastar dos mercenários de imagens da meca do cinema. Mesmo que o final edulcorado, sempre copiado pelo “cinema de famíliaâ€, pareça caracterizar aquelas “fraquezas surpreendentes†em que o cineasta às vezes tropeçava segundo Lotte Eisner, nada nos impede de ter Aurora na conta de um dos raros filmes perfeitos da história do cinema; o grão de imperfeição trazido pelo final artificioso (apesar de belo, com a imagem do beijo no plano de conclusão) não faz mossa no conjunto narrativo.

Considerando o esqueleto do roteiro de Aurora, pode-se achar similitudes com a história contada em Um lugar ao sol (1951), do americano George Stevens. No filme de Murnau um homem casado com uma camponesa é seduzido por uma mulher da cidade para que mate a esposa, venda sua propriedade e fuja para a cidade com a faceira amante; em Um lugar ao sol o homem deixa seu coração duelar entre uma desenvolta amante e o caipirismo duma garota que ele seduziu, está grávida e agora deve matar segundo conselhos da amante rica; em ambos os filmes a cena do desejo de crime que não se consuma se dá a bordo duma canoa, em ambos os filmes a angústia de interpretação do macho (Montgomery Clift em Stevens, George O’Brien em Murnau) se assemelha caracteristicamente: em Murnau esta tensão de gestos faciais é mais diabólica, inclusive naquilo que de santificado possa ter algo diabólico, remetendo aos conflitos metafísicos do escritor russo F.M. Dostoievski.

Em Aurora (como em outras realizações de Murnau, em Fausto, 1926, no derradeiro Tabu, 1931) o gosto do cineasta pelas exuberâncias visuais da natureza se salienta. Lado a lado com detalhes dos gestos de cenários, a tempestade que gera os desesperos e os equívocos do fim do filme é filmada com volúpia por Murnau; ela acende e deforma o desejo criminoso do protagonista, que passa boa parte do tempo da ação entre a culpa e o ciúme (remetemos à cena da barbearia, a aparição de um galanteador para sua mulher), e esta tempestade é também um signo (e um símbolo) para a luxúria e a ambição humanas reveladas nos passos iniciais pela personagem do homem. Aurora, apogeu da natureza (ou do natural cinematográfico), pode deixar entrever a nostalgia da terra que há no homem Murnau, criado entre camponeses, mas não há naturalismo na encenação: aquilo que pode parecer aqui e ali um melodrama natural logo se converte numa encenação irreal, como na cena em que o casal central vai cruzando os cenários da metrópole e daqui a pouco parecem fantasmagorias intercaladas no trânsito de carros da cidade; lá pelas tantas, com raro senso de beleza plástica, os atores se movem entre os automóveis de maneira profundamente hierática, como se Murnau estivesse antecipando certos achados do russo Sergei Paradjanov em seu experimentalíssimo Sayat Nova, a cor da granada (1969).

Como no escritor francês André Gide, a dúbia sexualidade de Murnau caracterizou seu jeito de artista: sua arte cinematográfica é de determinada maneira graças a seu homossexualismo. Certos aspectos da arquitetura dos cenários, algumas fusões e sobreimpressões de imagens trazem indelével a soltura sexual de Murnau.

Aurora é igualmente um título significativo para o filme. Significa talvez o começo de um novo cinema. Um cinema que só alguém como Murnau poderia realizar.

P.S.: Um adendo final para o senso do cômico grotesco exibido por Murnau na seqüência do porquinho bêbado, semelhando em seu claudicar o homem que pouco antes se embriagara com o mesmo vinho; é uma cena curiosa num filme voltado para o sombrio e o trágico. Um breve instante de relaxamento das tensões do observador. (Eron Fagundes)