Crítica sobre o filme "Mundana, A":

Eron Duarte Fagundes
Mundana, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 30/09/2007
O austríaco Billy Wilder faz filmes como quem bebe um gole d’água; o cinema sai de sua câmara com uma naturalidade poucas vezes vista —se habitualmente todo o processo de produção de um filme é algo complicado e os resultados artísticos finais são sempre interrogativos, Wilder transforma todo este jogo numa brincadeira natural. A mundana (A foreign affair; 1948) pode não estar entre os suas obras-primas, mas revela para o espectador deliciado a mesma mão leve e graciosa que lhe rendeu, no acaso de sua carreira, uma de suas comédias tão afiadamente críticas quanto divertidas, A primeira página (1974).

Sob a aparência dum entretenimento escapista (o que em muitos aspectos o filme não deixa de ser, e Wilder se entrega às facilidades de seu senso de entretenimento com volúpia), A mundana é um novo evento estético do universo do cineasta. Sua poderosa elegância vienense está novamente em cena, desde os belíssimos travellings aéreos do aeroplano americano que traz uma comitiva política dos Estados Unidos para investigações numa Berlim pós-guerra, pós-jugo-nazista; no filme imediatamente anterior de Wilder, A valsa do imperador (1947), este refinamento vienense foi extremado, expandindo-se para os gestos das personagens e para o guarda-roupa; em A mundana os vestígios deste esplendor do realizador ainda são fortes, apesar de Wilder buscar uma Berlim caracterizada pela destruição bélica, como se vê dos cenários do cabaré e do local onde a mundana reside (mas de qualquer jeito estes detalhes não aproximam a Berlim de Wilder do áspero realismo do italiano Roberto Rossellini em Alemanha, ano zero, 1947). Gostosamente, digamos assim, Wilder se aliena mais, está longe do comprometimento histórico-social de Rossellini; se o pensamento pode perder um pouco, ganha o sabor do espetáculo. A mundana é um filme que acompanhamos com voracidade.

Em seu sentido de ser antes um espetáculo que uma acurada visão de mundo, A mundana está próximo de Testemunha de acusação (1958). Se este filme dos anos 50 inaugurou a febre americana das películas de tribunal, A mundana é um melodrama com trechos de corte policial. Mostra um general americano, matreiro e vigarista com as mulheres, envolvido com uma cantora de cabaré outrora envolvido com o nazismo graças a seu caso com um general de Hitler; ao ver que uma congressista de seu país chega a Berlim e começa a investigar a cantora mundana, passa a seduzi-la para atrapalhar as investigações que poderiam prejudicá-lo. A briga surda entre as duas mulheres por um homem, conduzida com sutileza mestra por Wilder, é o fio de tensão de A mundana, mais que os retratos de pós-guerra: Wilder está longe das neuroses bélicas.

A alemã Marlene Dietrich, revelada no cinema em O anjo azul (1930), do também vienense Josef Von Sternberg, e que interpretaria para Wilder o citado Testemunha de acusação, é a estrela que convém na pele da mundana do título; controlada, germanicamente distanciada, cantando esparsamente nos tetos baixos do cabaré, ela desenvolve uma estrelismo que se diferencia daqueles das atrizes genuinamente americanas. Mas sua presença em A mundana erige ao lado dos aspectos autorais de Wilder o sistema de estrelas de Hollywood que certamente foi mais forte nos anos de lançamento da produção. (Eron Fagundes)