Sempre se dirá que o italiano Vittorio De Sica atingiu o auge de sua arte ao rodar quatro obras-primas do neo-realismo italiano onde a participação de Cesare Zavattini no roteiro ia além deste esqueleto inicial para se inserir numa própria orientação estética de direção: Vítimas da tormenta (1945), Ladrões de bicicleta (1948), Milagre em Milão (1950) e Umberto D (1951) são os filmes em questão. Mas é bom revisar, sem preconceitos, a obra posterior de De Sica para ver mesmo o que sobrou dela para o cinéfilo de hoje.
Os girassóis da Rússia (Il girassoli; 1970) foi provavelmente o trabalho de De Sica mais conhecido do grande público. Dizia-se que De Sica conspurcara seu passado neo-realista, rodando um melodrama de efeitos fáceis para o estrelismo de sua amiga Sophia Loren em que o grande intérprete Marcello Mastroianni teria de murchar como um co-adjuvante qualquer; afinal, o filme fora produzido por Carlo Ponti, marido de Sophia. É certo que há muito desta coisa sentimentalmente grandiloqüente de Hollywood, na esteira de E o vento levou (1939), de Victor Fleming e George Cukor; os sentimentos exacerbam exageradamente na tela e os desempenhos dos astros Mastroianni e Loren servem a compor imperiosamente esta exacerbação. Mas De Sica é inevitavelmente um diretor de cinema mais sutilmente europeu que o trabalho de direção visto em E o vento levou, embora passe ao público sensações assemelhadas; o sentimental de De Sica casa-se admiravelmente com seu poder de síntese, revelando-se supremo em Umberto D. Os girassóis da Rússia exercita com muita precisão este casamento estético, e esta precisão se aclara na maneira nada dispersiva com que o realizador acumula episódios e lança em cena os flash backs para contar sua história a partir da memória das personagens. Este processo de sensibilidade no flash back foi depois aproveitado pelo italiano Ettore Scola em Nós que nos amávamos tanto (1974), que inclusive trazia para a narrativa a aparição da figura real de De Sica (homenagem comovente) algum tempo antes de sua morte.
A junção da melancolia impagável de Sophia Loren e da grande classe de Marcello Mastroianni faz o espectador ficar de joelhos diante desta química interpretativa. De Sica os havia juntado em Duas mulheres (1961), Ontem, hoje e amanhã (1963) e Matrimônio à italiana (1964); mas em Os girassóis da Rússia eles tocam mais agudamente as emoções da platéia. Antônio e Giovanna, as personagens centrais, acabam transformando-se com naturalidade numa vivência direta de encenação de seus intérpretes; quando Antônio faz uma omelete de vinte e quatro ovos para comer com Giovanna, e vai surgindo uma notável intimidade cênica ali naquela cozinha que parece extraída do neo-realismo mesmo, muito da amizade de Sophia e Marcello (uma espécie de folclore do cinema internacional) se põe documentalmente na tela. É este dado que dá a estatura do filme e o devolve a suas origens neo-realistas, para além do puro melodrama encenado. Com uma carga excessiva de episódios (o namoro, o casamento, o enlouquecimento do homem, o manicômio, a campamha da Rússia na neve, o desaparecimento, a ida dela à Rússia, o vê-lo compondo outra família por lá, ela voltando e gerando outra família, encontros e desencontros, tudo um acúmulo cênico muito condensado), Os girassóis da Rússia tem uma precisão estética notável. Zavattini é o colaborador de sempre no roteiro, a fotografia de Giuseppe Rotuno e a música de Henry Mancini ajudam a acentuar o envolvimento do filme.