Crtica sobre o filme "Laranja Mecânica":

Eron Duarte Fagundes
Laranja Mecânica Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 28/11/2007
Durante uns bons anos a moral dos governos militares brasileiros impediu os espectadores do país de conhecer Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick. Diziam que nossa censura só liberava o filme de Kubrick com cortes, e Kubrick era um artista intransigente: com cortes, não autorizava a exibição em parte alguma do mundo. Até que, em setembro de 1978, a lenta e gradual abertura política permitiu a entrada no país de Laranja mecânica, sem cortes mas com um acréscimo grotesco: as poucas e breves imagens de vaginas teriam de ser cobertas por bolas pretas, que nas rápidas e trêfegas cenas de sexo tinham de executar uma estranha ginástica de dança diante dos olhos aparvalhados do espectador. Nos anos entre o lançamento internacional da fita e sua chegada ao Brasil, muito cinemaníaco nacional excursionou a Montevidéu para tapar este furo de sua cultura cinematográfica. Outro dado curioso daquelas concorridas sessões do fim dos anos 70 em Porto Alegre era que, ao longo de toda a projeção, um fluxo de indivíduos se movimentava para as saídas dos cinemas, sintoma de que a violência ininterrupta das seqüências incomodava as platéias da época.

Mais de vinte anos passados, revejo esta obra-prima de Kubrick em sua versão em dvd. A intensa beleza plástica e a força simbólica da narrativa não perderam seu vigor com os anos ou diante da visão em tela pequena. Kubrick é um cineasta original, e penetrar numa sala para ver um de seus filmes era, como acontecia com os lançamentos de um Federico Fellini ou um Ingmar Bergman, preparar-se para degustar um universo diferente, uma forma nada comum de filmar; criatividade em grau máximo. Desde a imagem de abertura, Kubrick fere os olhos do assistente apelando para o inusitado e o pessoal: a maquiagem repuxada e barrocamente exagerada de Alex, na sarcástica interpretação de Malcom McDowell (o olhar mau do ator é um dos eventos do filme), aparece em primeiro plano como para dar o tom de perversidade da narrativa. Os cenários são elaboradíssimos: o antro em que se reúne a gangue de Alex (a leiteria) antes das noitadas de maldades é uma pintura futurista. Os comentários musicais são soberbos, impõem-se por dentro da imagem. Baseado num romance de Anthony Burgess, Kubrick se vale duma dialeto peculiar e cruel nos diálogos, gíria inventada por Burgess a partir de suas experiências londrinas de ruas. Talvez, em face da banalização da violência no mundo e no cinema, o coeficiente de agressividade das cenas kubrickianas não chegue atualmente a prejudicar o estômago de ninguém; mas é certo que a estética de Kubrick permanece intocada em sua grandeza.

Basicamente, em Laranja mecânica, Kubrick faz a radiografia de duas violências, a do indivíduo e a da sociedade (que se organiza em Estado para exercê-la). Alex, movido por drogas e pela publicidade visual, é violento e cria sua gangue; Kubrick antecipa um pouco o universo de gangues do final do século XX. Traído por seus comparsas, preso, é submetido ao tratamento Ludovico, um fictício método em que o submetem a uma lavagem cerebral para lhe retirar os instintos básicos de violência e sexualidade; o indivíduo perverso vai virar um cordeirinho. Kubrick exubera em gravuras, pinturas e esculturas para dar seu recado; uma das vítimas de Alex, a mulher dos gatos, é golpeada mortalmente por ele com uma peça fálica esculpida. O jogo de complexidade é exercido na caracterização de Alex: ele não é um marginal vulgar; ouve Beethoven depois de suas noites de crimes e estuprou a mulher do escritor subversivo cantando “Singing in the rain”, clássica canção cinematográfica de Hollywood. Kubrick é crítico em relação às próprias vítimas: o velho outrora agredido por Alex vinga-se na mesma moeda, convocando sua tribo de anciãos para dar-lhe um pau quando dá com ele na rua, assim como o escritor que critica por motivos políticos o método Ludovico não deixa de usar o método criticado para judiar de Alex ao descobrir que ele é seu algoz do passado. Kubrick desbanca a hipocrisia humana, amplamente.

A seqüência final, em que toda a trajetória de Alex é usada e invertida pelo governo para fins políticos, o protagonista quebrado (depois duma tentativa de suicídio ao ser torturado com a Nona de Beethoven na casa do escritor que antes ele espancara) e sorridente (afinal, o homem de Estado lhe estava dando comida na boca) numa cama de hospital, é o produto elevado do sarcasmo estético de Kubrick. (Eron Fagundes)