Crítica sobre o filme "Macbeth":

Eron Duarte Fagundes
Macbeth Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 17/01/2008
A gênese artística do cineasta norte-americano Orson Welles é shakespeareana. A ambição, a profundidade humana e a vastidão de suas inquietações aproximam o cinema de Welles daquilo que o teatro elisabetano de William Shakespeare trouxe três séculos antes. Como todo indivíduo culto dos países de língua inglesa, Welles foi amassado pela altissonância lingüística de Shakespeare; no caso de Welles, soube transformar estas leituras numa arte igualmente grande. Como ator (uma figura imponente em cena) e como diretor de cinema (uma criatividade de encenação exuberante), Welles adotou uma grandiloqüência de filmar que nasceu três séculos antes, em Shakespeare.

Macbeth (Macbeth; 1948) foi a primeira incursão direta de Welles no universo de Shakespeare, rodado nos estúdios desativados da Republic; a segunda incursão veio pouco depois, Otelo (1949-1952), feito meio à socapa no Marrocos. Como não poderia deixar de ser, Welles é sempre seu próprio protagonista. Ele vive o torturado Macbeth, envolto numa trama de assassinatos, traições e culpas. Sua esposa, a enviesada Lady Macbeth, que vem depois a enlouquecer e jogar-se dum despenhadeiro, é interpretada por Jeanette Nolan, uma estreante sem muitos recursos interpretativos, mas Welles vale-se deste problema como exercício de sua própria excentricidade de filmar. O Macbeth de Shakespeare nas mãos de Welles é uma experimentação visual constante. O pesado rebuscamento clássico do dramaturgo britânico é abraçado com paixão por Welles, mas é ao mesmo tempo subvertido por suas inquietudes cinematográficas. E estes dois conceitos de cena —o texto clássico e reflexivo que se distancia do público de hoje e as preocupações formais fílmicas— são rigores que dificultam a aproximação à platéia habitual ; mas àquela altura, um autêntico maldito dentro do cinema americano, diretor itinerante pelo mundo, a criação de Welles se lixava para qualquer público.

Obscuro, delirante, grandiloqüente, Macbeth é outra confirmação da originalidade de Welles, sua não conformidade às regras de filmar. Uma gramática visual que se modifica em cada enquadramento. Vê-lo e revê-lo é uma questão de paixão pelo cinema. E cinema, mesmo tratado intelectualmente como em Welles, é acima de tudo paixão.

P.S.: Vale ainda lembrar que aquela cena quase ao final em que Lady Macbeth se lança no abismo e ao plano de seu suicídio é aposto um rápido plano não-diegético duma freira que grita apavorada ao ver o suicídio, foi retomada dez anos depois pelo inglês Alfred Hitchcock em Um corpo que cai (1958). No filme de Hitchcock, lá no fim, também uma inesperada e estranha freira surge diante da imagem duma personagem que se despenha do alto. Cabe observar que na peça de Shakespeare o suicídio é elíptico, muito menos se pode ver qualquer freira horrorizada. O que Welles usou com esplendor expressionista foram as famosas bruxas de Shakespeare, que funcionam um pouco como um coro grego para os eventos narrativos. (Eron Fagundes)