Crítica sobre o filme "Carruagem de Ouro, A":

Eron Duarte Fagundes
Carruagem de Ouro, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 17/01/2008
A carruagem de ouro (Le carrosse d’or; 1952), rodado na Itália pelo francês Jean Renoir mas cuja versão em inglês é a que está sendo lançada em dvd e é esta versão em inglês considerada pelo próprio diretor a melhor especialmente pelos contrastes da língua inglesa com o temperamento italianíssimo da fala da atriz Anna Magnani, é uma fantasia crítica de seu realizador estabelecida a partir de uma peça do francês Prosper Merimée. Ao lançar as bases da ação natural no cinema em Toni (1934), Renoir deixava a encenação fluir livremente: havia, é claro, seu rigor de estilo mas este rigor transparecia na tela de maneira desabusadamente improvisada. Ao partir para uma fantasia de época, uma comedia dell’arte ali entre o teatro, o circo e o cinema primitivo, Renoir fechou o cerco, estabelecendo um rigor mais minucioso e talvez procurando evitar que o filme se soltasse demais, para caminhos indesejados. O resultado é uma peça amável, inteligente e sensível mas que certamente terá dificuldade de impor ao público esta sua aparência composta e fechada em si mesma.

O que Renoir basicamente discute em A carruagem de ouro são as relações entre uma encenação no teatro e uma encenação na vida, as relações entre a personagem de Anna Magnani e a personagem que esta personagem vive no teatro. E mais ainda: tenta trazer para o filme as relações entre Anna e sua própria personagem. Passados mais de cinqüenta anos, estas questões esboçadas pelo cineasta têm o seu quê de engenhosas, mas padecem de uma certa ingenuidade diante daquilo que o brasileiro Eduardo Coutinho fez em seu filme Jogo de cena (2007). É como se A carruagem de ouro pudesse ser uma personagem do filme de Coutinho, como Marília Pera ou Fernanda Torres. Escreveu Renoir sobre seu filme: “Ou se faz um documentário ou se faz uma composição. A ação inteira transcorrerá num cenário italiano. Será uma ação teatral. A realidade externa não terá qualquer participação. Espero que um pouco de realidade interna se torne aparente, mas isso só o futuro dirá.†É verdade que A carruagem de ouro influenciou certos processos de reconstituição de época no cinema desde então; mas os anos lhe trouxeram nas bordas um ar viciado que torna às vezes opressa a respiração do observador.

Auxiliado pelo fotógrafo Claude Renoir, seu sobrinho, o realizador executa uma laboriosa pesquisa de cores em A carruagem de ouro, onde cenários e figurinos se entrelaçam admiravelmente. Confessa Renoir que fez seu filme ouvindo composições musicais de Antonio Vivaldi; o espectador poderá perceber que o rimo de Vivaldi contamina benfazejamente o filme.

Demais, é admirável o esforço de La Magnani para desfazer-se de seu habitual realismo italiano e cair pouco a pouco numa espécie de fanfarra francesa. Anna foi a mãe morta pelos nazistas diante de seu filho pequeno em Roma, cidade aberta (1945), do italiano Roberto Rossellini. E ninguém melhor do que ela poderia ser a mãe que faz das tripas coração para realizar o sonho de sua filha em Belíssima (1951), de outro gênio italiano, Luchino Visconti. E é também Anna, irreverente, ferina, quem, acordada no meio da noite por outro italiano famoso, Federico Fellini, para uma cena de seu documentário de ficção Roma de Fellini (1971), resmunga: “Vai dormir, Federico!†Agora, em carruagem de ouro, Anna segue fielmente os impulsos da fantasia visual de Renoir; e o “fielmente†não é subserviência, pois Anna é exuberante em cena. Ela é um dos trunfos deste filme que sempre vale a pena ver ou rever. (Eron Fagundes)