Crítica sobre o filme "Primo Basílio":

Eron Duarte Fagundes
Primo Basílio Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 10/03/2008

É sempre complicado aventurar-se a expor numa tela a versão cinematográfica de um romance tão famoso e tão literariamente bem executado quanto O primo Basílio (1878), do português Eça de Queirós. Mas o brasileiro Daniel Filho, do alto de sua importância no meio fílmico e televisivo brasileiro, não se amedrontou: embora tenha feito antes uma minissérie televisiva voltada para os cenários e para o tempo de Eça, Daniel voltou a atacar a leitura eciana sem a reverência que intimida, mas como alguém que conversa à vontade com seu avô; eis assim como nasce Primo Basílio (2007), de Daniel Filho. A nova leitura que Daniel empreende ao universo de Eça toma um outro ponto de vista, e isto acaba por enriquecer estas relações entre a literatura e o cinema no cinema brasileiro; mudando a ambientação da Lisboa da década de 70 do século XIX para a São Paulo da década de 50 do século XX (a mesma São Paulo onde não há muito uma série de incompetências de administração pública e individuais geraram o maior desastre da aviação brasileira), é como se Daniel tentasse ler Eça imaginando que o grande prosador luso pudesse ser um autor brasileiro que escrevesse em nosso década de 50 tendo olhos para um futuro alvorecer do século XXI, como se Daniel sentasse à escrivaninha do escritor ou o escritor sentasse na cadeira do diretor Daniel —a mesquinharia das classes dirigentes do país não se alterou muito nestas cinco décadas; e na verdade somos herdeiros da sociedade lusitana putrefacta que Eça descreve tão bem e Daniel apresenta cinematograficamente (uma São Paulo que se espelha na velha Lisboa) em estilo muitas vezes engenhoso e que vem a ocultar suas possíveis origens televisivas (objetividade linear e visão empresarial que os anos trouxeram a Daniel Filho). Assim, pela magia do cinema, não somente livro e filme se unem estética e socialmente, mas três épocas se misturam nas visões críticas dos artistas: a Lisboa do século XIX, a São Paulo dos anos 50 do século passado e várias cidades brasileiras desta aurora do terceiro milênio.

Convém antes de mais nada observar o senso cinematográfico de Daniel: a beleza e a adequação dos movimentos de câmara, a clareza estilística da montagem, passando pela textura do elenco e pela transparência da fotografia; nota-se em todos estes detalhes de encenação como Daniel vai incorporando em seu filme uma elegância de filmar que se corresponde muito bem com a elegância do verbo de Eça. Mas não é uma elegância rançosa, acadêmica, que impeça o vôo criativo. Como em Eça, este estilo luminoso, que às vezes parece arredondado demais neste processo de sedução superficial em que faz cair o leitor-espectador (esta parece ser a crítica de um escandalizado Machado de Assis à sensualidade faceira do português; o crítico gaúcho Augusto Meyer fala também de um encantamento fácil na frase eciana), pois direi que este estilo luminoso (perigosamente luminoso) não estorva a entrada do sarcasmo e da acuidade críticos; a função estética e a função social se casam tanto no livro de Eça quanto no filme de Daniel.

Para bem caracterizar a época em que se passa a história (a São Paulo do fim dos anos 50), Daniel se vale de pequenas e precisas anotações. Refere o campeonato mundial (Suécia) ganho pela seleção brasileira naqueles tempos. Faz da personagem de Jorge, o marido da adúltera Luísa, um engenheiro da construção de Brasília, o que não está longe das atividades do Jorge de Eça, que era um engenheiro de minas em deslocamentos constantes por Portugal. Mas Daniel faz estas referências históricas sem ênfases, sem pleonasmos ou rebuscamentos; tudo se insere com agilidade no corpo narrativo para situar ao espectador o Eça brasileiro que Daniel visualizou. Se o contexto histórico é sutilmente evocado, as caracterizações das personagens ocupam o primeiro plano do drama, pois é com estas caracterizações que a sensibilidade de diretor de Daniel quer chegar ao público (“Não quero que filme meu vá para festival. Filme que ganha todos os festivais dificilmente ganha todos os públicos.â€, diz o cineasta, desafiando os críticos). Uma destas preciosidades de caracterizações é a forma como Daniel adapta o estudo que Eça faz da heroína, a Luísa, uma figura romântica do século XIX; Eça, antes de fazer sua Luísa mergulhar na sanha sexual fácil de seu primo Basílio, a descreve como uma leitora de romances, os romances da época, românticos ou trágico-românticos, “lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, por mêsâ€, “em solteira, aos 18 anos, entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia, desejara então viver num daqueles castelos escocesesâ€; a capacidade de condensação, cinematográfica e televisiva de Daniel, se resolve admiravelmente em imagens: numa seqüência vemos Luísa vendo enlevada uma telenovela dos anos 50, escrita por Janete Clair, nome emblemático para os telenoveleiros de então; ou seja, no lugar da dama das camélias, Janete Clair, a dama da televisão.

É curioso observar que Daniel Filho é melhor diretor de atrizes que de atores. É bem verdade que Débora Falabella e Glória Pires respectivamente como a frágil Luísa e a venenosa empregada Juliana são mais densas como intérpretes do que seus companheiros de elenco, Fábio Assunção, o priminho safado, e Reynaldo Gianecchini, o corno desesperado e trabalhador; mas se evidencia que Daniel se acerca mais das composições suaves e tensas de Débora para as fazer contracenar com uma Glória Pires perfeccionista em suas asperezas e rudezas de uma plebe esquecida pelas classes mais favorecidas —aliás, esta sutil definição das relações egoístas de classe no Brasil se aclaram na frase final dita pelo primo num camarote, ele se refere à morte de sua prima, mas bem se aplica ao tipo de relacionamento da classe burguesa a que ele pertence com os demais componentes do país: “Antes ela do que eu!â€

Como se sabe, um filme baseado num livro é uma leitura em imagens deste livro. Como diz um ensaio do crítico brasileiro José Carlos Avellar, a imagem é o chão da palavra, o texto filmado (é possível filmar um romance?) de Eça baixa nas imagens de Daniel Filho, mas, observa Avellar também ocorre que “as imagens em movimento buscam aterrissar no textoâ€, isto é, o filme de Daniel aterrissa no texto de Eça sob a forma de roteiro. Mais ainda quando se trata duma atualização temporal e temática como nesta incursão de Daniel, certas modificações se vão impondo e a eficácia de modernidade destas modificações vai depender do grau de sensibilidade do diretor, o que Daniel geralmente tem; a morte de Juliana é uma destas modificações curiosas: em quase tudo, a seqüência se assemelha ao livro, o amigo Sebastião e um policial pressionam a empregada, finalmente lhe retiram as cartas incriminatórias do adultério, Juliana se exalta, vê-se perdida, finalmente cai fulminada por uma parada cardíaca, “levou com ânsia as mãos ambas ao coração, e caiu para o lado, com um som mole, como um fardo de roupa.â€; isto se dá no livro, com aquele clímax providencial e dramaticamente idealizado dos romances da época, mas Daniel conclui a cena de outra maneira, prefere fazer Sebastião esmagar com seu carro o corpo de Juliana, a cena é escura, o cenário sombrio, o filme envereda por uma narrativa de gangster onde um certo cinema americano dos anos 40 invade o universo de Eça com a condescendência de Daniel.

Falando em liberdades modernas com este texto clássico, Daniel parece exorcizar esta coisa de tornar marmórea e rançosa sua adaptação, que finalmente se revela de um frescor jovial. Este exorcismo se exerce desde o início, desde o batismo do filme: ele tira o artigo definido masculino do título de seu filme, que se chama simplesmente Primo Basílio; assim, Primo Basílio quer ser diferente de O primo Basílio; embora um só artigo seja muito pouco, parece um bom começo. Julio Bressane e André Klotzel também evitaram o longo título de um romance de Machado de Assis: Bressane utilizou a segunda parte do título, a que indica o protagonista, Brás Cubas (1985); Klotzel se valeu da primeira parte, a que aponta para os acontecimentos, Memórias póstumas (2001). O título de um filme não diz tudo, e talvez diga muito pouco, de sua realização, mas certamente diz alguma coisa das intenções do realizador. Esta intenção, bem ou mal, se centraliza na questão da diferença do filme para com o livro, o filme quer individualizar-se, distinguir-se. Primo Basílio é diferente de O primo Basílio? Diferente e ao mesmo tempo igual. Diferente porque os meios narrativos e as perspectivas históricas se alteram. Igual porque —a crítica pode ser também fantasia, o pensador de cinema pode ser também como Luísa e, depois de tantos filmes e tantos livros, fantasiar e exagerar— se Eça fosse hoje um diretor de cinema paulista ele diria que seu Primo Basílio é o mesmo O primo Basílio de antanho. As coisas mudam, mas também permanecem. E poucas coisas na arte de todos os tempos permaneceram tanto, e sob diversas formas, como este romance de Eça. E o filme de Daniel Filho olha para o espelho para ver as rugas (onde? No livro ou no filme?) que podem diferenciá-lo de seu ancestral. (Eron Fagundes)