Crítica sobre o filme "Viagem a Darjeeling":

Eron Duarte Fagundes
Viagem a Darjeeling Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 03/04/2008

O prólogo de Viagem a Darjeeling (The Darjeeling limited; 2007), o novo filme do norte-americano Wes Anderson rodado no Himalaia, Ãndia, é o curta-metragem de dez minutos de duração Hotel Chevalier (2005), ambientado num sofisticado hotel de Paris, na França. Quando despejado na Internet, o filme curto de Anderson causou arrepios na platéia masculina em face da nudez da atriz Natalie Portman, generosamente despida pelo ator Jason Schwartzmann numa cena de sexo no asséptico cenário de um quarto de hotel parisiense. O que se disse é que Hotel Chevalier serviria de mote comercial para vender o novo projeto cinematográfico do diretor, o filme longo Viagem a Darjeeling; pode ser, pode até ser que o espectador habitual vá procurar em Hotel Chevalier as curvas carnais da senhorita Portman, mas o filme tem uma pulsação erótica que é fílmica e nasce da extrema precisão plástica e criativa e de cada quadro inventado por Anderson. Hotel Chevalier é uma inusitada visão de um relacionamento homem-mulher que se reencontra em Paris para viver sua tensa e intensa agonia amorosa; os gestos esquisitos das personagens e a milimétrica conduta da câmara são os mesmos dos filmes anteriores de Anderson, mas nesta obra curta são trabalhados com mais profundidade e consistência. O excêntrico Anderson cresceu esteticamente: deu seu salto. A criação fotográfica é um achado: as cores de tons amarelados do interior do hotel contrastam com a predominância tons azulados no plano geral que se descortina sobre Paris quando os dois protagonistas vão para a sacada de seu quarto; a eleição duma cor dominante (o amarelo, o azul), que é um artifício da estética pictórica, é deslumbrante em sua utilização em Hotel Chevalier.

Mas Hotel Chevalier, criado isoladamente, é na verdade parte integrante de Viagem a Darjeeling. A história de Hotel Chevalier é aquela que uma das personagens, justamente a de Jason Schartzmann (ator do curta e do longa), escreveu em suas viagens e mostra para seus irmãos; o diálogo final visto em Hotel Chevalier é relido por Jason lá pelo final de Viagem a Darjeeling. Esteticamente os dois filmes se integram; há uma ligação secreta entre ambos que torna a realização mais complexa do que poderia ser seu projeto inicial. Se Hotel Chevalier foi visto como um pontapé para aproximar Viagem a Darjeeling, uma proposta pouco comercial de cinema, do público, na verdade este filme curto se transformou num forte elemento de complexidade do filme longo.

Viagem a Darjeeling acaba por colocar o cinema de Anderson nos trilhos. Em Os excêntricos Tenembaums (2001) e A vida marinha com Steve Zissou (2004) a busca de Anderson pela comicidade esquisita esbarrava numa costura cerebral-estática, um patético que se desarticulava. Em Viagem a Darjeeling o cineasta tapa o ponto do cerebral e do patético mais delirantemente estético, mais devastador em sua visão das inesperadas esquisitices humanas: é como se o escritor tcheco Franz Kafka fosse reescrito pelo cinema exacerbando nos achados metafísicos ou simbologias espirituais seus tons aceleradamente cômicos. Depois do cenário concentrado de um barco em A vida marinha, é a vez do trem em Viagem a Darjeeling: o trem, de quem a câmara não se desprega, é sufocante e agrega dentro de si as diferenças ásperas entre os três irmãos americanos numa jornada espiritual pela Ãndia. Dentro do trem, a personagem de Jason e uma serviçal indiana protagonizam uma cena carnal, remetendo àquela de Hotel Chevalier entre Jason e Portman.

Adrien Brody como um dos irmãos tem a cara do cinema de Anderson. E desta vez tudo funciona maravilhosamente. O trio central, incluindo ainda Jason e Owen Wilson, está afiadíssimo com as intenções do diretor. Os três irmãos na índia, um ano após o funeral de seu pai, estão ali em busca de sua mãe. As experiências por que passam neste país remoto são tão cruelmente divertidas quanto intensamente místicas: sinal de que Anderson atingiu a estatura de gente grande; não era sem tempo. Com referências indiretas (musicais, especialmente) ao cinema telúrico e espiritual do diretor de cinema indiano Satyajit Ray (A casa e o mundo, 1984; O inimigo do povo, 1989), realizador quase desconhecido por aqui, Viagem a Darjeeling é certamente um dos mais belos filmes desta temporada de cinema. (Eron Fagundes)