Crítica sobre o filme "Madame Bovary":

Eron Duarte Fagundes
Madame Bovary Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 14/05/2008
Em linhas gerais, Madame Bovary (1991), de Claude Chabrol, é bastante fiel ao texto do romancista francês Gustave Flaubert; Chabrol utiliza a narrativa-over para cobrir episódios não revelados pela imagem, nestes momentos o texto de Flaubert está preso aos enquadramentos de Chabrol como uma coleira a seu cão. Em Madame Bovary Chabrol realiza mais do que nunca um cinema amarrado pela literatura; os inimigos do cinema francês sempre disseram isto de todo o cinema francês (Eric Rohmer é a principal vítima desta miopia crítica), mas em Madame Bovary as coisas na verdade emperram cinematograficamente.

Jean Renoir, ao que consta o primeiro a filmar o romance de Flaubert, não deixou de manter-se igualmente fiel ao clássico de sua literatura. Não são muitas nem fundamentais as divergências de roteiro entre o filme de Renoir e o de Chabrol. Quando Madame Bovary (1934), de Jean Renoir, começa, Carlos Bovary está casado com outra mulher, as cenas iniciais são bucolicamente campestres; quando a narrativa de Madame Bovary de Chabrol principia, a personagem do médico já está viúvo há oito meses e a seqüência de abertura mostra o atendimento que o senhor Bovary faz ao pai de Ema, o qual quebrou a perna. Renoir conclui seu filme com a morte de Ema, um primeiro plano do rosto da atriz Valentine é a imagem derradeira. Chabrol, depois da morte de Ema, utiliza o texto final do romance de Flaubert para revelar a morte de Carlos Bovary; as imagens mostram as pessoas da província de cá para lá. No mais, os episódios de que se vale Renoir são muitas vezes os mesmos aproveitados por Chabrol, uma ou outra alteração de diálogo ou maneira de compor a seqüência. O filme de Renoir tem cem minutos. O de Chabrol vai a cento e trinta e seis minutos. A diferença fundamental se dá na junção de dois tópicos: o alto poder de síntese de Renoir e a característica descontraída, solta de seu estilo de filmar. Madame Bovary de Chabrol se perde em digressões que tornam a narrativa arrastada e abusa de certos recursos literários que engessam demais o formato fílmico.

Se os intérpretes de Renoir (Valentine e Pierre Renoir, irmão do diretor) compõem mesmo os tipos provincianos desgraciosos e desglamurizados, Jean-François Balmer e Isabelle Hupert (apesar da excelência de suas composições) dão seu toque de estrelas que artificializam excessivamente um drama realista. É bem verdade que Hupert é muito mais atriz que Valentine. Sua vivência da morte de sua personagem, no final, por envenenamento, assume alturas vampirescas e um pouco parece calcada nas formas interpretativas da sueca Harriet Andersson como a moribunda Agnes em Gritos e sussurros (1972), de Ingmar Bergman. Isolada do filme, a interpretação de Isabelle nesta cena é muito mais forte e emocionante que a de Valentine interpretando a morte de Ema no filme de Renoir; mas no conjunto fílmico não sei se não seria o caso de preferir Valentine a Isabelle.

Chabrol é um dos grandes diretores do cinema francês, como se pôde ver no recente A comédia do poder (2006) (e Isabelle Hupert emprestou novamente seu extraordinário talento a seu constante diretor); mas Madame Bovary é certamente uma baixa em sua filmografia. É claro que Chabrol tem o dom do refinamento de filmar: tudo é muito elegante, sutil e engenhoso na maneira como se articulam em cena as relações entre o cinema e a literatura; mas, assim como ocorria em Um amor de Swann (1984), que o alemão Volker Schloendorff rodou a partir do romancista francês Marcel Proust, esta sutileza-elegância-engenhosidade encobre um vazio de intenções mas não elimina o gesso estético da realização. (Eron Fagundes)