Crtica sobre o filme "Desejo e Reparação":

Eron Duarte Fagundes
Desejo e Reparação Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 30/05/2008
O Oscar® não é, nem de longe, o melhor critério para se escolher um filme. Como qualquer prêmio de “indústria”, ele segue interesses comerciais e leva muito mais em conta o dinheiro e os interesses de seus “gestores” do que a qualidade dos filmes em si. Ainda assim, volta e meia a premiação mais badalada do cinema no mundo acerta ao valorizar realmente filmes que são bons. Por tudo isso é que eu sim me interesso pelo Oscar®. Seja para descobrir filmes bons ou para discordar desse “mundinho dinheirista” dos grandes estúdios. Além do fato que ele é um espelho do que outros querem que a gente compre - e é sempre interessante estudar o que os outros querem que a gente ache interessante. Eles acertam. Eles erram. Como nós, eu acredito.

Mas toda essa introdução para dizer que cheguei com muitas expectativas para ver a esse Desejo e Reparação. Afinal, ele foi indicado para sete Oscar® este ano (ganhou apenas o de trilha sonora, merecedíssimo, para Dario Marianelli), além de ter sido selecionado para outros 54 prêmios mundo afora. Antes de Onde os Fracos Não ter Vez se consagrar o grande vencedor do Oscar® de 2008, muitos críticos de cinema apontavam Desejo e Reparação com um dos favoritos aos prêmios principais. Fiquei muito curiosa, sendo assim, para vê-lo. Admito que gostei do filme, mas que ele fica milhas e milhas distante de O Gângster, outro que estava na disputa das listas antes de saírem os nomeados ao Oscar®. É um filme bacana e tal, nada mais. Realmente não enxerguei nele as qualidades que estão fazendo tantos críticos baixar a cabeça em sinal de reverência.

O filme me fez pensar muito em histórias de época, ao estilo de Razão e Sensibilidade, de Jane Austen, e de outros livros desta escritora inglesa. Mas Desejo e Reparação, na verdade, não remonta a tempos tão antigos. Ele se passa nos anos anteriores ao começo da Segunda Guerra Mundial e não na Inglaterra do século 18. Ainda assim, no filme se percebe vários elementos de uma história já vista anteriormente. Em especial a questão do abismo entre as classes sociais - ou seja: não interessa quem você é, mas em que berço você nasceu. Essa questão está muito presente no filme, desde o começo, na relação de todos com Robbie e vice-versa. E, claro, o amor entre Robbie e Cecilia afronta uma “ordem” das coisas que é impossível de ser afrontada, ainda que falemos de uma Inglaterra nos anos 30. Acho, na verdade, que mesmo na Inglaterra atual isso é meio inconcebível. E se o problema não é apenas a classe social, entra em jogo outras questões, como raça ou credo.

Desejo e Reparação parece “mais do mesmo” se for visto apenas por essa ótica. A verdade é que o filme realmente parece, boa parte do tempo, mais do mesmo… mais uma história de romance proibido que é descoberta (ou quase) e termina mal, dois amantes que são impedidos de se amarem, etc. O bom é que o filme não é só isso. Ele também pode ser visto por uma outra ótica, mais visível depois que se assiste ele quase todo… a ótica de que as histórias e a realidade são percebidas de várias formas. Ou você nunca ouviu que uma história tem sempre dois lados? Eu, por minha parte, sempre digo que uma história não tem apenas dois lados, mas muitos lados. E aí está o desafio do jornalismo em tentar contar alguma história, sabendo sempre que deve escutar vários lados para tentar ser, desta maneira, menos incompleto e injusto - no sentido de não dar voz aos vários ângulos de uma questão.

Sem perder o fio da meada (mas quase): Desejo e Reparação é interessante no final, quando nos revela não apenas a verdade sobre o que aconteceu com Lola - algo que já se pode deduzir e saber muito antes (eu, pelo menos, já sabia) -, mas, principalmente, nos revela o que Briony queria que fosse verdade e que tivesse acontecido ainda que, neste caso, não passou de criação literária. No fundo, a reflexão final é interessante: afinal, como lidar com uma culpa como a que ela carrega? Talvez a saída seja realmente fantasiar, como ela fez ao princípio, quando tinha 13 anos. O que separa a Briony de 13 anos da Briony prestes a esquecer quem é (a sempre maravilhosa Vanessa Redgrave) é nada mais que criação e arrependimento. Mas algo que une as duas é a fantasia, a criatividade, o gosto pela arte e pelo belo, a vontade de ter presenciado uma realidade diferente.

O que moveu a Briony de 13 anos a fazer o que fez pode dividir opiniões. Para mim, no fundo ela foi movida por egoísmo e inveja, mas para outros ela pode ter sido realmente inocente e ter entendido tudo errado. Independente, ela tomou uma atitude que mudou a vida de duas pessoas definitivamente. E o bonito da história é que a sua imaginação posterior, ao contar o que poderia ter acontecido com Cecilia e com Robbie depois que ele foi preso e mandado para a guerra, fez possível uma das realidades possíveis. E se ela não existiu, se não ocorreu de verdade, mas pelo menos em uma certa imaginação e em um certo sentido de fantasia sim que foi viável. Esse ponto do filme, da fantasia em primeiro plano, é o que salva ele de ser apenas um filme mediano. É uma maneira interessante de refletir sobre o que entendemos como realidade e sobre o que queremos com a fantasia. Ainda que tenha esse ponto interessante, o filme está longe de ser excepcional. (Alessandra Ogeda – confira mais detalhes no blog Crítica (non)sense da 7Arte)

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Da janela de seu quarto, a garotinha Briony Tallis vê sua irmã e um garoto diante duma área de águas (semelhando um pequeno lago artificial) à beira duma fonte. Arregala os olhos  quando percebe que sua irmã, que encara fixamente o rapaz, está retirando sua roupa de cima, como se fosse logo após ficar nua. Apavorada e surpresa, a menina volta-se para dentro de seus aposentos, negando-se a ver a cena que cuida impudica. Pronto, deve imaginar Briony, imagina o espectador, ela vai transar com ele ali mesma; o que Briony imagina é também o que o espectador, pela aparência da cena, deve imaginar. E é um golpe na pudicícia duma garotinha inglesa dos anos 30 do século XX. Mas, impaciente e curiosa, a menina torna à janela. Vê sua irmã sair molhada da água, segurando algo na mão. Esta segunda parte da seqüência parece estranha, criando um hiato entre o que aconteceu entre a saída da personagem da janela e sua volta à mesma janela. Porém, o que fica na cabeça da garotinha (e do espectador, que até aí adota seu ponto de vista) é a primeira parte da cena, sua irmã começando a desnudar-se diante de um homem. Pouco depois, poucos passos adiante na montagem, esta cena é filmada pelo lado de fora e então o espectador descobre o que houve: Cecília, a irmã de Briony, e Robbie, o garoto presente, tiveram uma discussão, ele deixou cair um caso quebrado na água e ela, enraivecida, retirou parte da roupa, mergulhou e foi buscar o objeto. A cena, em seus ângulos de visão, é construída em escassos e sintéticos planos, com uma precisão narrativa exemplar: o plano de Briony à janela, os breves planos de Cecília primeiro rígida, depois despindo-se, o plano de Briony que recua para o interior do quarto, novo plano à janela onde Briony vê sua irmã ressurgir das águas; ou os planos enxutos, no lado de fora, em que a câmara apanha a discussão de Cecília e Robbie, o mergulho na água, a volta à superfície.

Em Desejo e reparação (Atonement; 2007) o cineasta inglês Joe Wright discute a relatividade do olhar e a forma como a imaginação de quem olha pode alterar o que está sendo visto. Cinema de certa maneira é sempre uma discussão do olhar. Cuido que ninguém melhor do que o italiano Michelangelo Antonioni captou a aventura cinematográfica de olhar; em Depois daquele beijo/Blow up (1967) Antonioni torna maravilhosamente oblíqua qualquer objetividade do olhar. O que é mesmo que estamos vendo? Esta questão retorna na cena de Briony à janela em Desejo e reparação.

Desde menina, Briony tem pendores literários, é imaginativa, o que aguça a progressão olhar, imaginar, escrever. O barulho de sua velha máquina de escrever vai ecoar persistentemente em muitos trechos da faixa sonora  do filme. De uma certa maneira, a construção narrativa de Desejo e reparação vem de uma contemplação sobre os equívocos do olhar. Briony, a protagonista, não se contenta com a objetividade do que vê: imagina em cima. Depois do equívoco à beira da fonte, Briony vai surpreender sua irmã Cecília e Robbie fazendo sexo na biblioteca: Briony os interrompe. E finalmente, ao surpreender uma tentativa de estupro no campo, ela se convence de que era Robbie o estuprador: diante da cena da fonte e da cena da biblioteca, Robbie aparece a seus olhos (como ela mesma diz em seu testemunho contra o rapaz) como um “maníaco sexual”. Isto liquida com a vida de Robbie e com o amor desenhado na biblioteca entre Cecília e Robbie.

No vaivém temporal de Desejo e reparação, chegamos à seqüência final em que Briony é uma velha escritora à espera da morte e revela  que escreveu seu último livro (contando sua história, de sua irmã e de Robbie) para que a arte pudesse expiar a vida. Se a jovem atriz inglesa Keira Knightley tem uma interpretação entre lacrimosa e amanteigada que provoca alguns suspiros eróticos, a grande dama Vanessa Redgrave aparece no final como Briony para transformar o melodrama numa inesperada reflexão filosófica. Os autênticos cinéfilos ficamos todos de joelhos diante daquelas breves e profundas aparições de Vanessa no fim do filme.

Sublinhe-se ainda a excelência do roteiro do inglês Christopher Hampton, que há muitos anos fez sucesso ao verter para a direção do inglês Stephen Frears o texto de Choderlos de Laclos em Ligações perigosas (1988). Hampton também dirigiu alguns filmes preciosos, Carrington (1994) e O agente secreto (1995), este último extraído dum romance do inglês Joseph Conrad de 1907. Em Desejo e reparação Hampton soube criar as condições de linguagem para que o romance de Ian McEwan se convertesse em peça de filmagem nas mãos de Wright, que ainda e sempre parece um herdeiro cinematográfico da tradição novelística do século XIX, como já ficara plasmado  em seu filme inicial, uma incursão pelo universo da ficcionista inglesa Jane Austen, Orgulho e preconceito (2005). Eron Fagundes)