Crítica sobre o filme "Caçador de Pipas, O":

Eron Duarte Fagundes
Caçador de Pipas, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 04/06/2008

Convém dizer que O caçador de pipas (The kite runner; 2007) é um filme extremamente desonesto para com o espectador. Seu realizador, o norte-americano Marc Forster, vinha esforçando-se por construir uma obra um pouco diversa dentro da produção corrente, embora suas falhas narrativas se evidenciassem; seu trabalho anterior, Mais estranho que a ficção (2006), era um curioso rebento das hesitações de seu cinema entre a construção duma novidade e o tom travado desta novidade. Em O caçador de pipas Forster desistiu de fazer seu próprio cinema. É ourivesaria suntuosa mas vazia. É certamente o trabalho mais ambicioso do cineasta: talvez tivesse na origem intenções artísticas, mas se afunda constrangedoramente na indústria.

Antes de mais nada, cabe apontar os pontos nevrálgicos da desonestidade do filme. Forster e seu roteirista David Benioff foram buscar no sucesso de livraria homônimo escrito pelo afegão Khaled Hosseini personagens do Afeganistão; e, para dar uma aparência de autenticidade, os intérpretes são quase todos afegãos e a língua falada no filme é um dialeto persa local. Mas o pretendido realismo de O caçador de pipas é pasteurizado. O Afeganistão que vemos é muito mais uma personagem de Hollywood do que o país real movido por distúrbios entre colonialistas de fora e fanáticos de dentro há trinta anos. O olhar de Forster para o Afeganistão é tão exótico quanto irritante em sua posição sobranceira; e sobra ali um olhar colonizador —oriundo do colonialismo cultural, econômico, político que o Ocidente impõe a pátrias distantes e miseráveis como esta.

Na base, a narrativa do filme se debruça sobre a história duma amizade de infância rompida pela guerra. O francês Louis Malle mostrava maravilhosamente em Adeus, meninos (1987) como o brutal e preconceituoso mundo dos adultos determinava os destinos das amizades infantis. Sem o rigor e a profundidade de Malle, Forster tangencia o assunto com um melodrama tipicamente americano; é como se história cor-de-rosa narrada pelo filme pudesse apaziguar a consciência do espectador e transformar toda a barbárie num possível conto de fadas final.

Como Desejo e reparação (2007), do inglês Joe Wright, O caçador de pipas trata também duma culpa de infância. Se a adolescente do filme de Wright acusa falsamente o namorado de sua irmã dum estupro, determinando uma radical virada de rumos na vida de todos, o protagonista do filme de Forster permitiu que seu melhor amigo fosse estuprado por um inimigo maior e violento sem esboçar a menor ajuda ou a menor compaixão. Mas se Wright lida estética e humanamente com refinamento com a questão da culpa, Forster envereda por soluções caça-níqueis, de efeitos fáceis.

Um equívoco em tantos sentidos, O caçador de pipas aproveita-se também do marketing de ter sido proibido no Afeganistão. Como a mulher adúltera apedrejada pelos talibãs numa cena do filme, pode-se dizer que o próprio filme esconde sua face e deixa na tela aquilo que lhe interessa para conquistar o público mais desavisado. (Eron Fagundes)