Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 14/06/2008
Na fase final de sua filmografia, o italiano Roberto Rossellini mudou-se para a televisão, onde rodou encenações educativas, dotadas de um didatismo cru que todavia não estorva a criatividade do cineasta. Sócrates (1970) é um dos pontos altos desta fase; e aà se percebe o quanto este paradoxo de mudar e permanecer o mesmo ao longo dos anos, desde o neo-realismo de Roma, cidade aberta (1945), passando pelas mutações espirituais de Europa 51 (1951), um outro realismo espiritual em Era noite em Roma (1960) e finalmente o desembarque num formato televisivo intelectual como em Sócrates, aà é que se vê que a criatividade de Rossellini obedeceu a uma ascensão coerente dentro de seu projeto de cinema.
Sócrates foi um filósofo ateniense que não deixou escritos à posteridade, suas lições foram sempre orais; o que conhecemos de seu pensamento vem de seus discÃpulos, o principal deles é Platão. Sócrates pertence a uma época em que o conhecimento era transmitido oralmente. Depois veio a época do conhecimento escrito: o conhecimento por via literária. E estamos chegando agora ao conhecimento por via visual: o cinema e a televisão. Rossellini é um dos grandes humanistas desta era: seu cinema une a palavra e a imagem, é profundo, tem um rigor estético e moral que é sua verdadeira espinha. Sócrates exubera em atualidade, permanência, quase quarenta anos depois de sua realização; a dignidade e as contradições do filósofo grego parecem ressuscitar na própria trajetória do cineasta Rossellini, um autêntico pensador do cinema; Sócrates reencarna em Rossellini, ligando os tempos distantes da humanidade. A presunção e a humildade do saber estão na figura de Sócrates, assim como no próprio cinema de Rossellini; a mesma habilidade de raciocÃnio que põe em polvorosa seus adversários no tribunal popular que o condena à morte, é esta mesma habilidade que move seu ego como um ser de espÃrito que esmaga seus conterrâneos e os faz condená-lo como algo perigoso, indesejável; pensar é, pois, algo tão saudável quanto perigoso nas sociedades humanas. Rossellini e seu filme sabem disto; sua vida foi uma prova disto. Segundo o historiador brasileiro Paulo Emilio Salles Gomes, não eram seus casos com atrizes famosas que determinavam o escândalo Rossellini, mas as preocupações e as perspectivas metafÃsicas e morais do cineasta.
Em Sócrates Rossellini revisita uma grande mente com o mesmo rigor e o mesmo despojamento de suas obras dos anos 40; Rossellini se põe dentro de Sócrates, Rossellini é também Sócrates, como foi o Santo Agostinho (1971) e o Messias (1976), seu derradeiro trabalho; filósofo, santo e salvador, Rossellini foi todavia tão singelo quanto o homem comum da Itália, aquele que ele retratou em seus filmes neo-realistas.
Certezas e incertezas de um grande homem do cinema podem ser apreciadas em Sócrates, uma encenação histórica semidocumental. Estão ali, Ãntegros, o rigor moral e estético do maior cineasta produzido pelo cinema. (Eron Fagundes)