Crtica sobre o filme "Madame Bovary, de Jean Renoir":

Eron Duarte Fagundes
Madame Bovary, de Jean Renoir Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 14/06/2008
Nos anos 30 do século passado o cineasta francês Jean Renoir edificou um estilo de filmar em que o natural da cena sobressaía, uma prévia do neo-realismo italiano, ambicionava, como escreveu o realizador em Escritos sobre cinema (1974), que tudo parecesse como se “uma câmara invisível filmara as fases de um conflito, sem que isso fosse percebido pelas pessoas arrastadas inconscientemente para a ação.” É dentro deste contexto histórico-estético que se compreenderá melhor esta entidade fílmica que é o Madame Bovary (1934) de Renoir: o diretor toma os elementos da trama de Gustave Flaubert, o autor do romance, e os solta no universo de Renoir, o universo livre e despojado que o diretor vinha exercitando em obras-primas como Boudu salvo das águas (1932) e Toni (1934); não temos amarras literárias, embora seja uma narrativa de época, mas é como se Renoir fosse à província francesa e documentasse as coisas. Estes aspectos naturais da Bovary de Renoir é que a afastam daquilo que fez outro francês, Claude Chabrol: a Madame Bovary (1991) de Chabrol é cerebral e estática e não se desenvolve com a naturalidade das narrativas de Renoir.

Mas isto não significa que Renoir desequilibre seu filme com a justaposição a um texto clássico de elementos aleatórios e precários. Renoir, como o também francês Robert Bresson e o italiano Roberto Rossellini, harmoniza como ninguém a improvisação e o dirigido em cinema; seu rigor e sua espontaneidade são perceptíveis na tensão estética dos movimentos de câmara (há um travelling-para-trás numa estrada perdida no meio do campo, este movimento aparece a interstícios narrativos como um estribilho visual), no justo encadeamento de planos-seqüência naturalistas e diretos e numa decupagem rítmica que, sendo elaborada, nunca desdenha das características mais objetivas e sem frescura do cinema.

Renoir utilizou o texto de Flaubert, ambientando-o no próprio tempo do romance do escritor, para debruçar-se sobre o apodrecimento das relações burguesas que se eternizam na sociedade francesa; se a Bovary de Flaubert é um ser estético e até mesmo estático em suas nuanças, a Bovary de Renoir é uma imagem constante e desolada da interiorana da França. É claro que Renoir recorre aos ícones literários da narrativa de Flaubert, como os amores feitos a cortinas fechadas numa carruagem entre Ema e Leon (no filme de Chabrol também voltam estas cenas para sempre na memória de qualquer leitor de Madame Bovary, 1856) e também as leituras sonhadoras da personagem central referidas nos diálogos (o teor fantasista destas leituras sempre fizeram os críticos ver no Quixote de Cervantes o ancestral de Ema), mas tudo isto se encaixa habilmente no feixe de anotações do cotidiano que Renoir executava a medo mas primorosamente na década de 30 do século XX.

Apesar das profundas diferenças e de todos os condimentos que determinam as duas realizações, certamente a Madame Bovary de Chabrol catou algumas coisas básicas na Bovary de Renoir. Uma destas coisas básicas está na interpretação tão íntima quanto distanciada de Valentine Tessier na pele da Bovary de Renoir; a grande atriz Isabelle Hupert, ao expor sua Bovary para Chabrol, se caracterizou um pouco em sua ancestral, pois em alguns planos do filme de Renoir assoma na face da Tessier o fantasma da Hupert (ou é bem o contrário). Chabrol igualmente segue o rigor clássico, de fidelidade ao original exibido por Renoir; o resultado é que difere: enquanto Renoir, experimentando o natural, solta este rigor à emoção, Chabrol aprisiona a densidade emocional dentro do filme-cérebro-literatura que propõe.

Apesar de basicamente fiel ao universo de Flaubert, enxerta uma divisão em partes, com títulos, que não existe no romance; e segue até a morte de Ema, enquanto o livro chega à morte de Carlos. De maneira alguma sobressai no filme de Renoir a estrutura geométrica e complexa do romance: é uma síntese tão autenticamente cinematográfica como se poderia esperar de alguém como Renoir, cujo brilho de narrar em imagens atingiu seu maior poder de concentração em A regra do jogo (1939). O romance de Flaubert começa inserindo aquele fugaz (e que depois desapareceria do restante da narrativa) narrador-personagem-plural que tantos cabelos em pé pôs no escritor peruano Mario Vargas Llosa em seu ensaio A orgia perpétua (1975). Aqueles requintes vagos de memória da sala de aula do início do romance são de cara substituídos, no filme de Renoir, pelos cenários da campanha e pelas desgraciosas figuras em cena, a Ema da Tessier e o Carlos vivido por Pierre Renoir, irmão do realizador, compondo esta figura redonda de burguês.

Para enfeixar, cabe dizer que a Bovary é uma figura mítica do Ocidente que interessa diferentemente ao cinema. Para sair de seu estrelismo e, despojada, adaptar-se ao naturalismo do Renoir dos anos 30. Para uso do cerebralismo pós-nouvelle-vague de Claude Chabrol. E também serve às experiências radicais e não raro incompreendidas do cineasta português Manoel de Oliveira, que a recriou em seu rigoroso e excêntrico Vale Abraão (1993) a partir dum romance da portuguesa Agustina Bessa-Luís. (Eron Fagundes)