DAo mesmo tempo em que pinga na cidade a enérgica nota cinematográfica de Shine a light (2008), documentário de música assinado pelo norte-americano Martin Scorsese, o observador cinematográfico pode desfrutar de outro tipo de abordagem da cinebiografia de um músico em Não estou lá (I’m not there; 2007), do também americano Todd Haynes. Embora o nome do cantor americano Bob Dylan não seja citado em cena, diz-se que o filme é uma cinebiografia de Dylan; as canções de Dylan preenchem a faixa sonora, os fatos da vida do cantor estão ali, quem chegou a conhecer em dvd o extraordinário No direction home: Bob Dylan (2005), de Martin Scorsese, vai reencontrar declarações e episódios que agora passam a figurar como enxertos para apontar Não estou lá para a figura de Dylan como acontecimento musical dos anos 60 —revemos as crÃticas ao possÃvel comercialismo do cantor ao tocar acompanhado de uma banda ou as entrevistas onde se questionava o conteúdo de protesto das delirantes canções de Dylan.
Mas na verdade é muito mais uma narrativa inspirada em Dylan do que uma cinebiografia (mesmo que livre) de Dylan. Não é um documentário, embora adote certas coisas da linguagem documental, como o veio jornalÃstico de uma empostada objetividade logo desarticulada por um andamento fÃlmico tão complexo quanto confuso na capacidade de passar ao assistente suas intenções finais.
O que Haynes fez foi fragmentar a personalidade de Dylan em fragmentos que sua visão de cineasta tem do músico. Dylan pode ser um cantor negro muito garoto e provocativo, um efeminado cheio de trejeitos e afetação, um pistoleiro cantador da época de Billy the Kid, um cantor fanático religioso tipicamente ianque. Dylan para Haynes pode ser qualquer coisa que queremos. Em Não estou lá é bem possÃvel esquecer que a referência inicial é Dylan e pensar no filme como uma visão tresloucada da América. As caracterÃsticas muitas vezes circenses de Não estou lá remetem ao realizador italiano Federico Fellini e seu Oito e meio (1963); há uma cena no filme de Haynes em que a personagem alça um estranho e onÃrico vôo, pairando na imagem, em vestes negras, como na seqüência de abertura do clássico de Fellini.
Não estou lá é um espetáculo curioso e que merece ser visto; mas acho que se goza melhor a realização se esquecermos seu mote inicial, Bob Dylan. Claro: não quando ouvimos a faixa sonora, pois Dylan é sempre o máximo, mas somente ao acompanharmos as trêfegas e perdidas evoluções da narrativa. (Eron Fagundes)
.Está claro que ainda é possÃvel se fazer projetos de vanguarda como este, nada comercial, mas ainda assim capaz de atrair meia dúzia de atores famosos e muito prestigio. Mérito do diretor Todd Haynes, que leva uma carreira singular assumindo-se gay na estréia (‘Poison‘ - 1991), fazendo fitas esquisitas depois (‘Safe‘ com Julianne Moore; ‘Velvet Goldmine ‘ com Christian Bale e Ewan MacGregor) e conseguindo repercussão no Oscar com “Longe do ParaÃso†(2002 com, novamente, Julianne Moore, que aqui faz ponta).
Talvez não precisasse, porém ser tão radical como aqui onde faz um filme sobre a vida e obra de Bob Dylan, mas sempre prevenindo que não é uma biografia nem nada convencional.
São mais impressões sobre um artista popular de notável influencia nos Estados Unidos por mais de 40 anos (recentemente se apresentou no Brasil, onde se queixaram outra vez de que se apresenta drogado, com a voz embolada e que mal se consegue ouvir alguma coisa. Também provou isso quando ganhou um Oscar de canção, em 2001 pela canção ‘Things have Changed‘, de ‘Wonder Boys‘, que por sinal não emplacou como clássica).
A idéia do diretor foi chamar diferentes atores para viver Dylan em momentos diversos de sua vida, chegando ao cumulo de usar uma criança negra (Marcus Carl Franklin) e mesmo uma mulher (Cate Blanchett ganhou Melhor Atriz em Veneza e foi indicada ao Oscar de Coadjuvante pela precisão com que conseguiu capturar alguns aspectos de Dylan sem deixar cair na imitação ou caricatura. Alguém duvida que é grande atriz?). Outros que demonstram facetas de Dylan são Richard Gere; o ator de “Perfumeâ€, Ben Whishaw, o recém falecido Heath Ledger (aliás sua então mulher Michelle Williams também faz ponta), o Batman, Christian Bale mas a verdade é parecem mais truques, ‘gimmick‘ do que realmente grandes sacadas. Ainda mais para quem não conhece profundamente a obra de Dylan (porque vai sair também sem saber muito mais).
Um filme que já foi chamado de idiosincrático cubista, audacioso (até porque naturalmente cada episódio com novo ator é feito num estilo diferente de narrativa).Ele é um menino negro quando começa como um imitador de Woody Guthrie com pretensões a Rimbaud. Depois vira Jack, no Village de Nova York (Bale), se torna Robbie (Heath) quando se faz “Graind of Sand†uma espécie de documentário sobre ele, com amigos dando entrevistas para a câmera. É quando entra Cate Blanchett como Jude (mais ou menos na época em que ele fez o filme ‘Dont Look Bac‘) e mais tarde o recluso Billy (da época em que fez o faroeste ‘Pat Garrett e Billy the Kid’ com Sam Peckinpah).
Ou seja, é um caso de amar ou odiar. Com mais chances de você ficar na segunda categoria. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 4 de abril de 2008)