Crítica sobre o filme "Idade da Terra, A":

Eron Duarte Fagundes
Idade da Terra, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/07/2008
“Bendito seja os loucos, porque eles encontrarão a razão.â€

Esta frase é dita assim, com seu problema de concordância na primeira oração, pela personagem-símbolo vivida por Antônio Pitanga, aquele que representaria o Cristo-negro na ótica apocalíptico-religiosa em que o cineasta brasileiro Glauber Rocha estrutura seu último filme, A idade da terra (1980), seu derradeiro e desesperado grito contra a miséria (econômica, histórica, antropológica, estética) da vida brasileira. A idade da terra é feito de exageros e divagações, erige a grandiloqüência intelectual como sua ossatura, mas tem a marca do gênio, do homem adiante de seu povo e de seu tempo mas que para além de sua prepotência cerebral adota a humildade de captar o espírito popular de sua nação. O pensamento ocidental mais inusitado e perscrutador se funde com a documentação de imagens carnavalescas intensamente brasileiras; o carnaval está na abertura do filme e vai igualmente fechá-lo, imagens documentais, soltas, ad infinitum.

A idade da terra é um mosaico disparatado que topa sua unidade na genialidade de Glauber. Uma seqüência de carnaval. O rigor televisivo-jornalístico da entrevista que Antônio Pitanga faz com o jornalista Carlos Castelo Branco, que fala das miudezas políticas brasileiras a partir do golpe militar de 1964. Uma cena baça e de fotografia deformada de um pai (Maurício do Valle) que encenam o golpe de Édipo numa orgia perturbada com uma prostituta. Uma cena religiosa de multidão que começa com excesso de luz e vai aumentando este excesso até que a luz faça desaparecer as imagens, ficando na tela só o foco luminoso. Certas seqüências reiterativas e retóricas (discursos das personagens exaustivamente reencenados como se o diretor estivesse ensaiando a entonação dos atores) vão e voltam demasiadas vezes consecutivamente. No início do filme, após o longo plano fixo luminoso (que dá início à reflexão da luz segundo Glauber), Jece Valadão e Norma Bengell correm na leteral da câmara. Mais para frente na montagem, Jece e o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, amigo de Glauber, se põem a correr na areia, junto ao mar; no fim desta seqüência vemos Glauber passar a mão no ombro de seu amigo Ubaldo. A metalinguagem de Glauber: sua voz-off aparece na montagem, mandando Pitanga falar mais alto, mandando uma atriz rebolar mais. Quando a voz-over de Glauber opera por sobre as imagens seu discurso político-cinematográfico, Glauber o faz com pausas e indecisões, como se estivesse construindo suas idéias naquele momento mesmo de gravar sua voz. E em certo instante de A idade da terra a voz-over de Glauber contracena com as vozes-in das personagens, embaralhando-se e criando um delírio visual-sonoro. Há também um momento em que as imagens diante da câmara estão de cabeça para baixo. E outra seqüência, um balé de freiras na multidão, as imagens se superpõem, se interpenetram nebulosamente: uma poesia plástica.

A idade da terra é isto: um evento plástico feito de luz. Em A idade da terra se mexe no interior da luz do cinema, é uma psicanálise da luz, como queria Glauber: esta é sua revolução estética.

Quando vi A idade da terra no início dos anos 80, não tive paciência com ele. Impaciências de um jovem certamente. De qualquer maneira, as relações do filme com os espectadores mesmo os mais interessados em extravagâncias fílmicas, nunca foram tranqüilas. É preciso despir-se muito do positivismo cinematográfico para mergulhar nesta cloaca de luz que irrompe furiosa de dentro de A idade da terra. (Eron Fagundes)