Crítica sobre o filme "Barravento":

Eron Duarte Fagundes
Barravento Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/07/2008
Barravento (1962) foi o primeiro filme dirigido por Glauber Rocha e nele se notam as pegadas hesitantes de um cineasta que já tinha um turbilhão de idéias sobre as relações entre cinema e sociedade mas ainda estava longe da explosão estética que viria a partir de Deus e o diabo na terra do sol (1964). Sabe-se que foi Luiz Paulino dos Santos (que nos créditos aparece tão-somente como autor da história) quem começou a dirigir Barravento, mas logo desistiu e Glauber tomou as rédeas como um jovem ansioso de cinema; e sabe-se também que a feição definitiva da montagem se deve a Nelson Pereira dos Santos. Tudo isto torna a narrativa de Barravento um tanto quanto difusa, mas não retira do filme a unidade de pensamento, pois a linha de ação cinematográfica entre Luiz Paulino, Nelson Pereira e Glauber, na época, se assemelhava: todos os três propugnavam um cinema inspirado no povo e contestador da ordem vigente.

O elemento mais importante duma realização como Barravento é incrustar como item de linguagem cinematográfica o candomblé; apesar de certas tendências racionais do filme (o que hoje lhe dá uma estrutura excessivamente geométrica e até acadêmica, desde aqueles pleonásticos e professorais letreiros iniciais) e das palavras do negro Firmino, o protagonista, segundo as quais o candomblé não serve para nada, o feitiço é coisa de gente atrasada, a estilização de Barravento é dada mesmo pela religião, pelo místico; as longas sessões de dança e canto afro-brasileiros entram por esse terreno. Muitos anos depois, Nelson Pereira dos Santos, superando as ingenuidades (estéticas e dogmáticas) desta fita ainda primitiva, radicalizaria e aperfeiçoaria as relações entre candomblé e linguagem cinematográfica na obra-prima O amuleto de ogum (1974); é bem possível que nesta depuração duma estética a partir das religiões populares brasileiras Nelson estivesse pensando na distante experiência de sua juventude e de Glauber, Barravento, ou seja, retomar para melhorar.

A verdade é que Glauber ainda não soltara seu autêntico verbo em Barravento, aquele verbo gritado e sangüíneo que desestabiliza a imagem em A idade da terra (1980). Barravento parece preso a concepções neo-realistas de cinema vindas diretamente da Itália; Barravento tem a naturalidade documental duma localidade litorânea de pescadores baianos, mas sua referência mais direta é Stromboli, terra de Deus (1949), do italiano Roberto Rossellini, igualmente ambientado entre pescadores. A câmara de Rocha ao observar os pescadores age quase como um registro mecânico, distanciado muitas vezes.

A bela negra Luiza Maranhão como Cota tem seu banho nu no mar, e seu nu é tão histórico no cinema brasileiro quanto a nudez de Norma Bengel numa praia do Rio em Os cafajestes (1962), de Ruy Guerra. Ambos estes filmes, rodados simultaneamente, foram fotografados por Tony Rabatoni, que depois faria carreira como diretor de filmes pornográficos. Antônio Sampaio, na pele de Firmino, é um pré-Antônio Pitanga no universo de Glauber.

Quem se interessar por esmiuçar mais o que está dentro e o que rodeou a produção de Barravento no início dos anos 60, pode tentar localizar o ensaio Barravento: a estréia de Glauber (1987), de José Gatti, editado pela Universidade Federal de Santa Catarina em Florianópolis e que foi antes apresentado como dissertação de mestrado para a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em novembro de 1985. (Eron Fagundes)