Crtica sobre o filme "Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro":

Eron Duarte Fagundes
Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 12/07/2008
Depois do prestígio estético de Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967), o cineasta brasileiro Glauber Rocha passou a pertencer ao grupo de personalidades do cinema internacional. Como ele mesmo costumava dizer, seus filmes eram mais conhecidos no exterior do que aqui; no Brasil sua obra era habitualmente estorvada por duas censuras, uma de natureza estética que não compreendia seus dilemas de linguagem, outra de natureza política que olhava com estranheza e desconfiança para suas alegorias, ambas estas censuras em seus graus mais violentos pareciam querer destruir o cinema de Glauber (temendo que este destruir saísse do sentido figurado para o concreto, ele retirou os negativos do país, depositando-os no exterior nos anos 70). O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1968) parece um pouco fruto da internacionalização do cinema de Glauber no fim dos anos 60; além dos produtores brasileiros Zelito Viana e Luiz Carlos Barreto, a realização contou com um produtor francês, Claude Antoine.

Todavia, a internacionalização não trouxe prejuízos aos aspectos nacionais, profundamente brasileiros do cinema de Glauber. O dragão da maldade contra o santo guerreiro capta em narrativa de cinema o ritmo brasileiro, é um saboroso conto brasileiro em imagens; o exemplo mais rico desta brasilidade e desta musicalidade à brasileira vem da luta-dança entre Antônio das Mortes e o cangaceiro Coirana, é uma simulação da capoeira, mas não é a capoeira, pois Glauber enxerta ali, numa dança-luta inventada, suas próprias originalidades de linguagem. É exultante a seqüência: a câmara se agita diante do movimento brincalhão das personagens, criando entre a imagem e o espectador uma nuvem sonora perturbadora, quase como se o espectador se mexesse na sala de cinema nos mesmos moldes dos lutadores-dançarinos na cena (quem espiar os documentários do disco 2, de extras, vai descobrir que esta cena igualmente fascinou o diretor de cinema americano Martin Scorsese, que descreve sua desorientação apaixonada diante das relações entre os movimentos de câmara e os movimentos dos atores ligados boca a boca por um estranho lenço vermelho).

O dragão da maldade contra a o santo guerreiro é aquele filme de Glauber (cineasta independente e experimental) em que os contatos com o público parecem ser mais tranqüilos. Está longe do sombrio duro de Deus e o diabo e Terra em transe e muito mais longe dos delírios políticos, poéticos ou luminosos que vieram depois, em seu exílio: fez O leão de sete cabeças (1969) na África, Cabeças cortadas (1970) na Espanha, Claro (1975) na Itália e voltou ao Brasil para seu último e desesperado filme, A idade da terra (1980). Diante do cadáver de Glauber em 1981, um texto-necrológio do crítico gaúcho Tuio Becker se perguntava ao repensar A idade da terra: aquilo era um filme ou produto da mente de um louco que tivera acesso aos milhões da Embrafilme? O dragão da maldade veio antes disto tudo e se afigura o mais digerível dos trabalhos de Glauber Rocha; mas não é um filme de concessões, em momento algum deixa de ser glauberiano, isto é, atira o pensamento para todos os lados, a procissão com uma santa (o misticismo), o desalinho da câmara na caatinga (fotografar a luz e o cenário brasileiros), o coronelismo, o pau-mandado da delegacia, o vigor duma personagem como Antônio das Mortes (criado em Deus e o diabo e a quem o ensaísta Jean-Claude Bernardet dedicou seu primeiro e clássico livro, Brasil em tempo de cinema, 1967) e outras bandas mais.

Antônio das Mortes é mesmo a figura central, que impulsiona O dragão da maldade para seus achados de energia criativa. Pode-se dizer que de certa maneira Antônio das Mortes assume porções do diretor do filme, para dirigir aqui e ali o olhar do observador como o Hamlet de Shakespeare é sob certos ângulos o próprio autor da peça que leva seu nome. Numa determinada cena de O dragão da maldade, que mostra no fundo do plano uma ação narrativa qualquer com várias personagens, Antônio das Mortes vem de fora para dentro do plano, assume um primeiro plano e encara sombria e chamativo a câmara (em sentido remoto, ele olha para o espectador através do espelho da câmara). Antônio das Mortes é interpretado pelo mais glauberiano dos atores brasileiros: Maurício do Valle. Este intérprete retornaria em A idade da terra para uma personagem ainda mais esdrúxula e devastadora de cena.

Em O dragão da maldade o professor vivido por Othon Bastos (que depois viveria o Paulo Honório de São Bernardo, 1972, de Leon Hirszman) carrega a precária consciência narrativa. Este professor vê seu amigo, o delegado Mattos (Hugo Carvana, outro ator que teve seus mais cortantes momentos nas mãos de Glauber) como a “sela do coronel Horácio”; são clássicas as cenas numa mesa de sinuca de Carvana e Othon jogando interminavelmente. O coronel Horácio tem o físico e principalmente a voz de Jofre Soares, que mais tarde seria o aposentado Afonso em seus primeiros dias de aposentadoria em Chuvas de verão (1978), de Carlos Diegues. O coronel tem uma mulher, Laura (Odete Lara, uma das estrelas de Noite vazia, 1964, de Walter Hugo Khouri); esta mulher é amante do delegado Mattos. Descoberto o adultério, a mulher vem a matar seu amante, para satisfazer seu traído marido. Misturando-se na imagem com o cadáver ensangüentado de Mattos, Laura é disputada a tapas por dois homens na aridez da caatinga. Glauber utiliza muitas vezes tramas novelescas de cordel, mas a maneira como ele as filma transcende estas remotas miudezas regionais e atinge o nervo dos grandes mitos ocidentais, sem deixar de ser em sua transparência de imagens agudamente brasileiro em cada um dos quadros de seus filmes.

No documentário O retorno do dragão, incluído no disco 1, os esforços de recuperação desta obra-prima de Glauber são revelados; as diversas fontes visuais e sonoras, os conceitos de informações ou as informações de conceitos, eis então estamos diante do milagre da era digital de trazer ao pé das novas gerações o mais próximo daquilo que Glauber Rocha propôs no fim dos anos 60 com este filme. E, assim posto, O dragão da maldade contra o santo guerreiro mostra que não envelheceu: a modernidade do cinema de Glauber parece inteira aqui, mais inteira do que na esmaecida cópia que se pôde ver por aqui no começo dos anos 80. (Eron Fagundes)