O cinema do norte-americano Woody Allen vai bem. É o que se vê em O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream; 2007), dotado duma justeza narrativa que encanta pela naturalidade com que o cineasta insere o fato inesperado (o crime) no seio da banalidade do cotidiano das personagens (dois irmãos às voltas com seus probleminhas sentimentais e de sobrevivência). Se em seu filme anterior, Scoop, o grande furo (2006), Allen produzia um sombrio fantástico ali entre Federico Fellini e Ingmar Bergman dentro da objetividade psicológica duma trama à Eric Rohmer, em O sonho de Cassandra a atmosfera de estranheza se desenvolve lentamente sem deixar de acumular a banalidade como num filme de Rohmer.
O inÃcio do filme é uma autêntica crônica do nada que Allen executa com distanciamento e delicadeza. Os dois irmãos vivem suas futilidades e compram um barco, que batizam de “o sonho de Cassandraâ€. Senão quando, um fato dramático faz a narrativa pesar mais que o ar que vinha respirando: um tio dos rapazes propõe a eles matarem um homem que conhece os podres da empresa deste tio e pode pôr em perigo a estabilidade da vida do tio; hesitando moralmente, eles acabam por cometer o crime. O que se segue depois entre Terry e Ian, os irmãos, é o desenvolvimento da culpa, que se aguça mais em Terry e vai gerar o desfecho trágico final. A questão do crime e da culpa parece estar assombrando Allen na fase atual de sua filmografia: Ponto final (2005) mostrava as mesmas questões em outro enredo. A relatividade do crime, eis o que Allen, um tanto agnosticamente, parece propor. Mais do que do escritor russo Fiódor M. Dostoievski, esta idéia de como a culpa tenta racionalizar o crime vem de um clássico do cinema americano, Um lugar ao sol (1951), de George Stevens. Se em Ponto final a referência ao filme de Stevens era um tanto velada, em O sonho de Cassandra a alusão se abre; como em Stevens, em Allen a obsessão do crime final entre os irmãos, o desejo de matar que vai e volta, os fatos que se precipitam copiando o que está na mente das personagens, tudo isto se dá a bordo dum barco, aqui “o sonho de Cassandraâ€, tão distante e tão perto da embarcação do frÃvolo rio dos anos 50 em Um lugar ao sol.
Diferentemente duma personagem que ele mesmo interpretou em Dirigindo no escuro (2002), Allen não está dirigindo no escuro: sabe o que está fazendo, sabe do que fala. A maturidade de sua linguagem do cotidiano é notável em O sonho de Cassandra. Preciso e despojado nos diálogos, conciso nos enquadramentos, delicado na utilização de certos movimentos de câmara, exigente no recurso dos atores, Allen faz bem ao gosto do espectador que possa ter alguma dificuldade em aceitar a natureza espetacular do cinema. (Eron Fagundes)
.É curioso como a crÃtica brasileira continua desculpando e prestigiando Woody Allen, ao contrário da americana, que cada vez mais o despreza e descarta. Infelizmente, estou mais com eles. Este seu novo filme (na verdade, depois já realizou mais dois: um que fez na Espanha, novamente com Scarlett Johansson, e o novo, onde retorna a Nova York), está entre seus piores. Mais sem graça (por ser drama policial; mas nem por isso precisava ser tão sem humor), mais trágico (nem final inesperado chega a ter) e, digamos, medÃocre.
Desta vez, Allen não participa como ator, e nem também utiliza sua habitual trilha musical com canções antigas de jazz ou, como no caso dos outros filmes britânicos que fez, com trechos de óperas ou balés famosos. Pela primeira vez, que me lembre, ele utiliza uma trilha musical original, feita pelo compositor Philip Glass, que tem um estilo muito marcante (fez, por exemplo, As Horas e Koyanisqaatsi), mas não acrescenta muito aqui.
O filme foi tão mal que nem chegou ao milhão (um) de renda nos EUA. Mesmo assim, os atores ainda querem trabalhar com ele, já que conseguiu reunir dois astros britânicos de prestigio, Colin Farrell e Ewan McGregor, que fazem irmãos (o que eles tem em comum, para serem irmãos, francamente não vejo). Mas tudo é tão desajeitado, tão mal contado que, se a intenção foi usar de humor negro, algo deu errado. Os ingleses reclamaram do diálogo, que soa artificial para eles, com o ritmo errado, com exagero no sotaque cockney (e a dupla central fala rápido demais). Enfim, esse é o menor dos problemas nesta história sobre dois irmãos de pais pobres: Terry (Farrell) é um mecânico, que vive com uma loira (a talentosa Sally Hawkins - digo isso por filmes que ela fez com Mike Leigh), mas é viciado em jogo e bebe demais. Vive fugindo dos credores. O irmão Ian (McGregor) dirige um restaurante com o pai, mas quer expandir o negócio na Califórnia. Durante muito tempo, a famÃlia viveu da generosidade de Howard (Tom Wilkinson, de Conduta de Risco), um tio rico.
A princÃpio, tudo vai bem, com uma vitória nas corridas que faz com que comprem um barco, ao qual dão o nome de Sonho de Cassandra, que é também o nome do vencedor do páreo. Terry também se envolve com a sexy atriz Ângela (Hayley Atwell). Logo, porém, mergulha em dividas, quando aparece o Tio que lhes pede um favor irrecusável: eles têm que matar Martin Burns (Phil Davis), um colega de trabalho, que iria denunciá-lo.
Sem quÃmica entre a dupla central, sem ponto de vista, sem estilo, o filme vai piorando ainda mais com seu decorrer. Tem até uma certa semelhança com Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, de Sidney Lumet, que é muito melhor e mais divertido. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 9 de maio de 2008)