Crítica sobre o filme "Uma Hora Contigo":

Eron Duarte Fagundes
Uma Hora Contigo Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 10/10/2008
Ernst Lubitsch é um diretor de cinema nascido em Berlim que depois de seu início ligado ao expressionismo alemão (a despeito da distância que vai entre sua descontração de filmar e o sombrio da escola germânica) emigrou para os Estados Unidos, onde rodou comédias elegantes e precisas que encantaram críticos como o francês François Truffaut, que furiosamente afirmou que chamaria de mentiroso o indivíduo que dissesse ter acabado de ver um Lubitsch onde haveria um plano inútil (segundo Truffaut, nos filmes do cineasta berlinense a montagem não admite um só plano decorativo, como um adjetivo vago e descartável). Não conheço muitos filmes de Lubitsch e cuido que não vi nenhum de seus filmes alemães, mas intriga-me o descaso que a maior analista do expressionismo, a grande crítica Lotte H. Eisner, faz dele em breves passagens de seu livro A tela demoníaca (1985). Lotte qualifica um dos filmes de Lubitsch de “grosseiroâ€. Noutra passagem, para exaltar F. W. Murnau, ela anota: “Lubitsch, cujo espírito vaudevilliano aprecia os qüiproquós artificiais, manipula portas múltiplas que, sem cessar, se abrem e fecham —mas estão longe de assumir o significado que adquirem em Murnau.†Mais adiante, igualmente em nome de Murnau e para exaltar Fausto (1926), Lotte assaca: “Se prestarmos atenção nesta ondulação incessante de massas, logo percebemos a que ponto Lubitsch tornou mecânicos seus movimentos de multidões; aqui, os corpos são impelidos incansavelmente segundo um ritmo ondulado e preciso em direção à figura de Fausto, curandeiro por graça do diabo.â€

Diante duma comédia tão deliciosa e perfeita quanto Uma hora contigo (One hour with you; 1932) é possível ao espectador de hoje compreender as ojerizas duma crítica ácida e exigente como Eisner às aparentes facilidades de filmar de Lubitsch, mas igualmente entendemos que a analista caiu na armadilha e limitou sua capacidade de meditar sobre um cineasta como Lubitsch. Voltemos a Truffaut, que equipara dois métodos tão distintos, o do alemão e o do inglês Alfred Hitchcock: “Aparentemente, trata-se de contar uma história em imagens e é sobre este ponto que eles próprios insistirão em suas entrevistas. Não é verdade. Eles não mentem por prazer ou para zombar de nós, mentem para simplificar, porque a realidade é muito complicada e é melhor consagrar o tempo a trabalhar e aperfeiçoar-se, pois estamos lidando com perfeccionistas.†Como aplicar tudo isto a Uma hora contigo? O vaudeville que tanto irrita o sofisticado espírito teutônico de Lotte Eisner está lá, mas é o mesmo norte pelo qual A regra do jogo (1939), do francês Jean Renoir, se banha neste tipo ingênuo de comédia popular: para criar uma aparência singela e por esta aparência singela chegar a outras águas, mais inquietantes e (pena que muitos não saibam ver) profundas. Sob a superfície do vaudeville, Lubitsch (príncipe da imagem segundo Truffaut, um grosseiro acariciador do público segundo Eisner) transforma Uma hora contigo numa inusitada reflexão sobre os pequenos transtornos sentimentais duma burguesia comum na América dos anos 30; recheado de um romantismo hoje fora de moda, incursionando aqui e ali pelo musical, Uma hora contigo é um espetáculo repleto de ironia que atualiza o romantismo de cena, pelo olhar enviesado manipula e corrige as situações folhetinescas. Três décadas antes das revoluções metalingüísticas trazidas para o cinema pelo franco-suíço Jean-Luc Godard, Lubitsch insere com naturalidade a conversa duma personagem com a câmara ou com o espectador (talvez uma influência, então arrojada para o cinema, do dramaturgo alemão Bertold Brecht), durante todo o filme é aqui e ali que a personagem de Maurice Chevalier, encrencada com enleios amorosos que podem prejudicar seu casamento com a criatura interpretada por Jeanette MacDonald, quem se dirige para a câmara (ao público) para dar breves explicações ou comentários sobre situações encenadas, no fim do filme tanto Chevalier quanto MacDonald cantam diretamente para a platéia os conselhos morais extraídos da fábula que acabaram de encenar (pois é bem assim, como uma deliciosa e todavia cortante fábula, que Lubitsch concebe e realiza seu filme).

Enxuto, despojado, cheio de tons diretos mas inegavelmente procurando pelo outro lado das coisas e pelo outro lado do riso, Uma hora contigo merece aclamação passadas mais de sete décadas de sua realização.

P.S.: Uma curiosidade é o nome de George Cukor como assistente de direção. Nas décadas seguintes, Cukor adquiria prestígio como diretor de cinema em Hollywood. Cukor foi considerado um especialista em dirigir mulheres. Pelas sutilezas imprimidas às marcações cênicas de Jeannete MacDonald e Genevieve Tobin em Uma hora contigo, pode-se perceber que Cukor aprendeu muita coisa com Lubitsch. (Eron Fagundes)