Crítica sobre o filme "Crime Americano, Um":

Edinho Pasquale
Crime Americano, Um Por Edinho Pasquale
| Data: 11/11/2008
A violência doméstica é um tema que virou amorfo na mídia atual. Se escuta falar de absurdos como se eles fossem comuns, corriqueiros, quase “normaisâ€. É a velha história de que algo super exposto - em quantidade, não em qualidade - acaba se transformando em algo praticamente banal. Espancamentos de mulheres, abusos contra filhos, terrorismo psicológico, diferentes formas de tortura, entre outras violências praticadas entre quatro paredes viraram um “sub-tema†da editoria de Polícia nos jornais. Na TV, as histórias escabrosas precedem o resultado do futebol ou alguma curiosidade do “mundo animalâ€. Mas o que parece “banal†se transforma em um soco no estômago quando as histórias passam a ser contadas em detalhes - e ainda mais na forma crua de imagens. Um Crime Americano, filme estrelado por Ellen Page e Catherine Keener, resgata uma história de violência doméstica que abalou os Estados Unidos na década de 60 para nos fazer refletir sobre a capacidade de alguns humanos - ou seriam todos? - em atuarem no extremo da crueldade.

Ellen Page trabalhou em Um Crime Americano antes de estrelar Juno - o filme que lhe rendeu uma indicação ao Oscar® de Melhor Atriz este ano e que lhe tornaria definitivamente conhecida mundo afora. Em Um Crime Americano, mais uma vez, ela mostra porque virou a “garota da vez†- ou uma das “garotas da vez†- em Hollywood. Realmente ela é ótima. Claro que a personagem de Sylvia Likens é muito mais “reta†- ou seja, sem muitas nuances ou complexidade - do que Juno mas, ainda assim, a garota manda ver.

O filme realmente é duro de assistir, em vários momentos. O terror psicológico e depois a tortura e violência física expostos realmente são de revoltar, de fazer o sangue ferver. Algo positivo no filme é que o início nos deixa em dúvida. Exceto se você leu algum texto antes e sabe do que realmente se trata a história, o filme deixa o início em aberto. Da maneira com a qual o diretor Tommy O’Haver começa a filmar, não se tem certeza de quem é a pessoa que está sendo julgada. Só depois, conforme a história vai se desenvolvendo, é que sabemos quem é a vilã da história.

Como eu disse anteriormente em outro texto, tem pessoas que realmente não deveriam ser pais. Neste filme, em especial, existem dois casais que realmente deveriam ser proibidos de ter ou de cuidar de crianças e jovens. Primeiramente, Lester e Betty. Está claro desde o início do filme que Lester acredita - se não durante todo o tempo, mas em parte dele - que as filhas atrapalham o seu casamento com Betty. Afinal, seria muito melhor a vida deles sem elas - que apenas dividem a atenção da mulher com ele. Se isto não era realmente o que ele pensava, é o que o roteiro escrito pelo diretor com Irene Turner sugere. Betty, por sua vez, parece mais carinhosa com as filhas, mas acaba concordando com o marido em deixá-las com uma praticamente desconhecida para que eles possam seguir em “férias conjugais†- com a desculpa de trabalhar.

Mas o pior exemplo mesmo, claro está, é mesmo o de Gertrude. O filme deixa nas entrelinhas que, além de desequilibrada, esta mulher sempre foi uma salafrária. Nem tanto por ela ter começado a ter filhos cedo e por ter tido um seguido do outro sem pensar se ela poderia criá-los - muita gente honesta e amorosa cae no mesmo erro -, mas especialmente pelo tipo de relação que ela mantêm com Andy (James Franco) e com todo e qualquer homem - ou adolescente - que entra na sua casa. Ela parece constantemente tentar “seduzir†os machos que pisam no seu terreno. Ok se ela tratasse os filhos bem, o que não é o caso. (SPOILER - não leia se você não assistiu o filme ainda). Mas o bacana é que o filme não demora muito para ir ao absurdo das relações estabelecidas no ceio da família Baniszewski. Também não demoramos muito para esperar o pior e para saber que a pessoa que está sendo julgada é mesmo Gertrudes. O que aconteceu comigo - não sei quanto à você, caro leitor - é que eu esperava, até praticamente o final, que o julgamento fosse por maltratos, por abuso, violência doméstica e tudo o mais… achei que o caso não chegaria ao ponto de homicídio.

Normalmente eu tenho o pé atrás com filmes que carregam a frase “baseado em uma história realâ€. Mas admito, também, que há produções muito boas por aí com esta característica. E foi muito, realmente muito dolorido saber que o que se vê dramatizado em Um Crime Americano, na verdade, aconteceu. Se não EXATAMENTE como ocorre na tela - afinal, os roteiristas e diretores sempre se dão o direito a ter alguma “licença poética-criativa†-, mas em grande parte. (SPOILER - não leia se você ainda não viu o filme). É duro pensar que Sylvia, que parecia ser incapaz de realmente se defender, levou mesmo tantas porradas, teve a pele queimada inúmeras vezes com cigarros, foi obrigada a introduzir uma garrafa de Coca-Cola na vagina (mais de uma vez, diga-se, ainda que no filme apareça só uma vez), entre outros absurdos expostos. E foi tudo verdade. Mas além de falar do desequilibrio e da loucura em que pode chegar uma mulher por ciúmes, despeito, insegurança e crueldade - sim, porque para fazer o que Gertrude fez era preciso, mais que tudo, ser cruel -, o filme trata de muitos outros temas. Como a conivência da sociedade - representada pelos vizinhos, escola, etc. - com problemas que estão na esquina, ainda mais quando eles se tratam de envolver uma mulher com muitos filhos. Sim, porque uma mulher que foi abandonada, como Gertrude, e que tem tantos filhos para criar, vai na Igreja, faz cara de santa e acaba sendo vista como uma “lutadoraâ€, uma mulher que pode perder o equilíbrio com “justificativasâ€. Resumindo: ela pode exagerar a dose aqui ou ali, afinal, pela vida que leva, se justifica. Não, não se justifica.

Um Crime Americano também trata, por causa disso, da hipocrisia da sociedade estadunidense - e, sendo realista, de vários outros países. Nela, basta ter vários filhos, ser “pobre†e ir na Igreja para ser visto como quase “santaâ€. O que foge deste perfil de penúria pode ser debatido, questionado, até condenado. A hipocrisia está também na comunidade que se mete na vida dos demais ao ponto de falar uns dos outros mas que, na hora de realmente zelar pelo bem-estar das pessoas, respeita a “individualidade†tão defendida pelos norte-americanos. Relembrando um frei que ouvi há pouco tempo, ou somos uma comunidade ou não somos. Ou realmente as pessoas se preocupam e zelam umas pelas outras ou tudo não passa de discurso e de encenação.

Mas um dos pontos mais impressionantes do filme, para mim, foi o que trata da “brutalidade coletivaâ€. Incrível como Gertrude influenciou os filhos para que eles também repetissem e perpetuassem as suas crueldades contra Sylvia e, com a ajuda deles, que ela incentivasse jovens da comunidade para participar da ciranda de torturas e violência contra a adolescente. Lendo uma matéria na Superinteressante de novembro sobre a neuroeconomia eu vi essa frase de Isaac Newton: “Consigo calcular os movimentos dos corpos celestes, mas não a loucura dos homensâ€. Na reportagem, o neurologista Armando Rocha, da Fundação Getúlio Vargas, falou de algo muito curioso: os neurônios-espelho. “No cérebro dos humanos, assim como em outros animais, existem os chamados neurônios-espelho, que são ativados quando você vê uma pessoa fazendo alguma coisa. Em certos casos, se torna irresistível imitar o comportamento delaâ€, explicou o neurologista. Isso me faz lembrar Clube da Luta e a necessidade de muitas pessoas simplesmente se livrarem do seu desejo pela violência agredindo os outros. Daí fiquei pensando: será que todas aquelas pessoas, sem motivo algum para agredir Sylvia, fizeram o que fizeram porque simplesmente queriam extravasar uma violência contida ou porque foram incentivadas pelos tais neurônios-espelho e, ao ver a crueldade praticada, simplesmente sentiram uma vontade incontrolável de imitar a cena? Realmente algo inacreditável, para mim. Existem dezenas, talvez centenas de maneiras de extravasar a tensão, o estresse, a nossa veia “animal†para a violência. Praticá-la contra uma pessoa inocente e sem capacidade de defesa, como foi o caso de Sylvia, é simplesmente algo infame, absurdo, uma ignomínia.

Como denúncia, o filme é super recomendado. Acho que filmes como este deveriam ser produzidos de tempos em tempos para lembrar as pessoas do quão obscuro pode ser o espírito humano. E como todos nós temos um lado “obscuroâ€, esse tipo de filme serve para reafirmar a importância de controlarmos a nós mesmos e, mais, de nos envolvermos no que acontece na nossa comunidade, na vizinhança - impedindo abusos sem, claro, invadir demais a privacidade alheia.

No mais, Um Crime Americano traz uma Catherine Keener simplesmente absurda, perfeita na interpretação de uma louca que busca ainda justificativas para seus atos. Ellen Page, ainda que interpretando um papel bastante uniforme - afinal, a Sylvia retratada é quase uma santa -, demonstra porque é um destaque entre a nova geração em Hollywood. Gostei também de Ari Graynor como Paula, a filha mais velha de Gertrude e a lenha que faltava na fogueira de insanidade e vaidade da mãe. A verdade é que toda a garotada do filme está muito bem. Vale citar: Scout Taylor-Compton como Stephanie (praticamente uma ponta no filme, assim como James Franco); Tristan Jarred como Johnny (especialmente cruel e maligno); Hannah Leigh Dworkin como Shirley; e Carlie Westerman como Marie.

(SPOILER - não leia se não assistiu ao filme ainda): O filme realmente me agradou. Ainda que ele seja “forte†e que possa desagradar as pessoas mais sensíveis, ele é duro como um filme assim tem que ser. Mas algo nele me incomodou: praticamente no final, achei desnecessária aquela “quase realidade†vivida por Sylvia. A fuga dela até encontrar os pais - algo que nunca aconteceu - vende a idéia de um “sonho†da garota mas, no fundo, acaba apenas confundindo as pessoas. Afinal, por pouco alguém pode chegar até este momento e realmente pensar se não foi isso que aconteceu.

Depois que vi o filme, fui atrás de mais informações sobre o caso. A verdade é que os textos que eu encontrei são todos em inglês. Para resumir o que eu achei, tudo que aparece na tela foi verdade - mas com umas nuances diferentes. Por exemplo, o casal Lester e Betty deixou as suas duas filhas - Sylvia com 16 e Jennie com 15 - aos cuidades de Gertrude porque eles pensavam que ela, tendo seis filhos para cuidar, seria uma boa mãe - e uma pessoa responsável. Eles realmente pagaram 20 dólares por semana para que ela ficasse com as adolescentes. Mas algo que o filme não mostra, por exemplo, é que Lester teria dito para Gertrudes que ela deveria ser dura com as meninas para pô-las um pouco “na linhaâ€, porque para elas faltava “disciplinaâ€. Para alguns pais a única maneira de fazer isso é via castigo e palmadas - algumas vezes um tanto pesadas. Um pai que bate uma vez, bate dezenas de vezes - e quem garante que ele não perde “a mão†algumas vezes?

Lendo mais a respeito também descobri que Sylvia realmente conseguiu empreender uma fuga da casa, mas quando já era tarde demais - ou seja, quando ela já estava bem debilitada. Desta maneira, ela foi facilmente capturada por um dos garotos que participava de suas seções de tortura. Também soube que quando Sylvia morreu, Gertrude alegou para a polícia que ela tinha sido atacada por uma gangue de rapazes - inclusive forjando uma carta da vítima sobre isto. A mulher, mais que louca, era realmente maligna.

Outro aspecto incrível do caso, para mim, foi a idéia de “punição†da garota. Afinal, todas aquelas pessoas realmente se imaginavam melhor e, mais que isso, com algum “poder conferido por Deus†para maltratar a adolescente? Acho que esse tipo de pensamento é o mesmo que moveu grupos como a Ku Klux Klan por tanto tempo, colocando na cabeça de algumas pessoas que elas eram “superiores†e que tinham uma certa legitimidade para agredir ou matar quem eles acreditavam ser passíveis de “puniçãoâ€.

Além de tudo que já comentei sobre o filme, outros dois aspectos me surpreenderam: por que diabos as irmãs Likens não fugiram daquela casa? Elas muito bem poderiam ter um dia, depois da escola, ter escapado e nunca mais ter aparecido. O outro aspecto foi a cumplicidade de Jennie com tudo que estava acontecendo. Ainda que ela tivesse sofrido poliomelite e fosse a mais frágil das irmãs, ela tinha 15 anos!! Ela e a irmã, se quisessem resistir aos maus tratos, muito bem poderiam enfrentar - ou tentar, pelo menos - a megera da dona da casa. Mas a passividade de ambas chega a ser assustadora. Algo que, para mim, só poderia mesmo ter ocorrido nos anos 60 ou antes - porque hoje em dia eu duvido que uma garota desta idade aceitaria submeter-se a tudo que Sylvia passou.

Os textos que falam do caso - em inglês - ressaltam que os vizinhos de Gertrude iam até a casa para praticar judô em Sylvia. Além das outras prácticas de tortura mostradas no filme, os jovens e Gertrudes davam banhos escaldantes na menina para “apagar os sinais†das violências que ela tinha sofrida. Quando ela morreu, contudo, a polícia identificou marcas antigas de tortura - o que desmascarou a versão da “agressão feita por uma gangue de meninos†que Gertrude havia tentado apresentar. Segundo os textos, apenas perto do final que Sylvia foi impedida de sair de casa. Nesta fase, ela era alimentada apenas com bolachas e não tinha a permissão de usar o banheiro.

Mas algo realmente revoltante é que 20 anos depois do crime a assassina Gertrudes conseguiu a liberdade. Ela saiu da cadeia em 1985, mudando o nome para Nadine Van Fossan. Ela foi então viver em Iowa e começou “vida novaâ€. Morreu de câncer em 1990. Paula, condenada por homicído em segundo grau, também foi libertada, se casou e foi morar em uma fazenda em Iowa. Esse tipo de permissividade da lei é o que, para mim, mais incentiva os dementes e cruéis a praticar crimes absurdos como este.

Uma curiosidade: o diretor Tommy O’Haver é natural de Indianapolis, cidade no Estado de Indiana onde ocorreu o crime. Sem dúvida a história, tão “familiar†para ele, lhe motivou a contar novamente esta história - porque o drama de Sylvia foi razão para o filme The Girl Next Door, também de 2007 (ao qual eu ainda não assisti, mas que parece menos “sérioâ€). O filme recebeu apenas uma indicação a prêmio até agora: para Catherine Keener no Emmy de 2008. (Alessandra Ogeda – confira mais detalhes no blog Crítica (non)sense da 7Arte)