Crítica sobre o filme "Jean Vigo Integral":

Eron Duarte Fagundes
Jean Vigo Integral Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/11/2008
I-O CINEMA NA ESCOLA

Sabe-se que Zero em comportamento (Zéro de conduite; 1933), um média-metragem de 41 minutos dirigido pelo francês Jean Vigo, antecipou as narrativas cinematográficas ambientadas entre jovens escolares em seu habitat de estudo, a escola; especialmente é notável que esta sombra tenha agido sobre a afeição por trabalhar com crianças notada depois no cineasta François Truffaut, especialmente em seu filme encenado em escola, A idade da inocência (1976). Anota Truffaut em seu texto sobre Vigo, cujos filmes Truffaut teria visto aos dezessete anos: “A princípio simpatizei mais com Zéro de conduite, provavelmente por identificação, já que era três ou quatro anos mais velho que os colegiais de Vigo.â€

O filme parte das próprias experiências de Vigo num internato francês; estas memórias ainda estavam bem vivas no jovem Vigo, o que caracteriza uma saudável autenticidade em Zero em comportamento. Conta a história que Vigo se preocupou com o resultado final da montagem deste filme, ao apresentá-lo ao público, e procurou dar a entender que teria havido cortes da censura, para justificar certos “buracos narrativosâ€; a ação da censura não houve e os “buracos narrativos†eram uma montagem mais libertina, menos “amarrada†que aquela vemos em L’Atalante (1934), onde os dotes experimentais e livres de Vigo, que morreu pouco depois das filmagens, foram domesticados pelos produtores, embora não lograssem abastardar sua obra-prima final. Zero em comportamento tem uma outra respiração, parece desacelerar os contatos entre os planos cinematográficos.

As relações entre o documental e o poético são ainda mais exacerbados em Zero em comportamento, cuja estética se põe ao lado da irreverência dos pequenos colegiais. O gosto pelo bizarro parece despejar-se nas águas depois trilhadas pelo italiano Federico Fellini a partir dos anos 50: a figura do diretor de escola —anão, barbudo e prepotentemente engraçado— é felliniana, se me permitem este anacronismo crítico. E há uma homenagem a Charles Chaplin na imagem dum professor que imita Carlito, especialmente no andar, remetendo à identidade Chaplin-Renoir-Vigo identificada por Truffaut em seu escrito. A caracterização documental que transborda em delírio de imagens poética está perfeitamente solucionada na seqüência de briga de travesseiros espalhando penas pelos ares, no dormitório, entre os alunos. São assim as evocações deste filme maravilhoso, esparsas quanto persistentes na retina.

Pode-se perceber que a influência de Zero em comportamento sobre os filmes ambientados em escola não está somente em Truffaut, posto na primeira fila certamente. Estes liames entre o documental e o ficcional, e suas sutis metamorfoses e transferências, podem ser percebidos no francês Quando tudo começa (1999), de Bertrand Tavernier, ou até meso no chinês Nenhum a menos (1998), de Zhang Yimou. E vem até a certas construções polêmicas do documentário francês Ser e ter (2002), de Nicolas Philibert, em que um professor-estrela, depois do sucesso da realização de Philibert, decidiu cobrar judicialmente seu cachê pela atuação em Ser e ter. Enfim, Zero em comportamento, longínquo e primitivo, é um marco referencial de tudo isto.

II- RETRATO EXPERIMENTAL DE UM BALNEÃRIO

A propósito de Nice (À propôs de Nice; 1930) foi o primeiro filme de Vigo e um curta-metragem de 22 minutos. Foi co-dirigido por Boris Kaufman, irmão do grande realizador russo Dziga Vertov, o que talvez pudesse explicar as aproximações com o giratório cine-olho de Vertov no processo estético de A propósito de Nice. Mas Vigo adapta as possíveis influências de Vertov à sua maneira francesa de filmar, o que confere extremada originalidade a seu filme, originalidade que nasce primeiramente de uma tensa aproximação a uma realidade curiosa e pitoresca de um balneário francês, Nice. A despeito da fama de seus dois filmes finais, A propósito de Nice me parece ser o mais criativo, o mais autenticamente Vigo, delirante em sua juvenilidade de observador (crônica poética em imagens), solto, desamarrado, cru e divino como poucas vezes o cinema soube ser: é o ponto alto (já no início, onde tudo o que se precisaria saber de Vigo já estava) da maneira cinematográfica de ser do cineasta. O documentário social se traveste de cine-olho. É um pequeno gênio (Vigo) com a câmara, Vigo como uma personagem de Vertov. Os tipos são delírios muitas vezes fellinianos (de novo penso em Fellini, como já ocorrera ao ver Zero em comportamento), músicos com máscaras que desfilam a tocar pelas praças da cidade. Há uma seqüência marcante (a ela também se refere, de passagem e superficialmente o crítico literário Antônio Cândido num dos extras do dvd): Vigo faz fusões da imagens num plano que vão mostrando diversas mulheres sentadas num banco à beira da praia, mulheres de diversas faixas etárias, de diversas belezas, de diversas vestes, a última é o corpo nu de uma mulher (Cândido só alude a esta mulher do plano, marcado talvez por sua nudezde choque): suprema irreverência, supremo calor estético de Vigo. Perto de A propósito de Nice, pode-se ver que os comerciantes do cinema domesticaram a arte de Vigo em L’Atalante, sem todavia destruir sua grandeza de encenar, o que é quase impossível.

III – O CINEMA A NADO

Taris ou a natação (Taris ou La natation; 1931) é um curta-metragem de nove minutos de Jean Vigo onde o cineasta acompanha um famoso nadador francês da época. Ao mesmo tempo em que serve como um documentário sobre as técnicas de bem nadar, Vigo introduz seu notável senso de poesia cinematográfica com suas tergiversações e alterações visuais que, todavia, nunca perdem o pé do real. É outra obra de grande beleza e dignidade, apesar de curta.

IV - AS TENSÕES FORMAIS DE JEAN VIGO

O cineasta francês Jean Vigo (1905-1934) morreu cedo, aos vinte e nove anos, pouco depois de rodar L’Atalante (1934), um filme que, diante da ausência de seu realizador, foi mutilado pelos produtores visando a dar uma feição mais comercial aos avanços vanguardistas de Vigo, o que felizmente não conseguiram. L’Atalante permanece intocável nas tensões formais muito pessoais que Vigo emprestou à armação de planos de seu filme e ao gestual de intenções e criatividade que ele exigiu de seu elenco. Estes aspectos (a morte cedo, jovem mesmo, e a briga com o sistema) levaram o crítico e cineasta francês François Truffaut, em artigo de 1970 e incluído em seu livro Os filmes de minha vida (1975), a aproximar o diretor de cinema Vigo do romancista Raymond Radiguet (1902-1923): “Pode-se estabelecer uma comparação superficial entre a carreira-relâmpago de Vigo e a de Radiguetâ€, escreveu Truffaut.

A visão de L’Atalante confirma o gosto de Vigo pelas cenas cruas, diretas, mas não deixa de incluir sua afeição pela metáfora e pela fantasia, criando o seu próprio ritmo de montagem cinematográfica. É uma narrativa rica de anotações e significados e que a cada revisão se torna mais complexa em seus achados, a despeito das características de objetividade de filmar que Vigo usava. No extra que acompanha a edição em dvd pela Versátil, Eric Rohmer entrevista François Truffaut sobre Vigo; são dois grandes cineastas franceses contemporâneos, seguramente influenciados pela escassa carreira de Vigo, expondo os conflitos de imagens de um velho pai; Rohmer, alegando o projeto de encomenda que foi L’Atalante, afirma que o processo estético de Vigo se interessa mais pela imagem e pouco pela história, no que Truffaut retruca que a história de L’Atalante interessa, ali estão as dificuldades iniciais de um casamento entre uma camponesa que deve abandonar seus antigos cenários pelo fechado de uma embarcação e um marinheiro que deve adaptar suas inquietas viagens ao temperamento de sua companheira, ou mais ou menos isto.

De carreira irrealizada, marginal mesmo, Vigo acabou se transformando num marco do cinema. L’Atalante é uma destas bússolas fílmicas, de quando em quando evocadas pelos cineastas. Em O último tango em Paris (1972) o prestigiado italiano Bernardo Bertolucci cita claramente o filme de Vigo: a personagem de Jean-Pierre Léaud, um cineasta da nouvelle vague dentro do filme de Bertolucci, atira no rio Sena uma bóia salva-vidas com a inscrição “L’Atalante†e esta bóia vai afundando-se na água; as imagens do barco de Vigo e das bóias dentro do barco com a inscrição “L’Atalante†é o que está evocado no filme de Bertolucci na cena de Léaud.

L’Atalante prima pelos gestos dos atores e por golpes dos cenários. Gatos aparecem amiúde decorativamente pelas cenas. A bagunça no interior do barco depois que a personagem de Dita Parlo é abandonada na cidade pela criatura de Jean Dasté. Dita e Jean se mudam ao controle de Vigo desde a seqüência inicial do casamento, ela vestida de noiva na neblina dentro do barco, passando pela tensa separação, até a reconciliação final, promovida pelo pai Jules, interpretação magistral de Michel Simon, que refaz aqui um pouco do extraordinário vagabundo que ele fez em Boudu salvo das águas (1932), de Jean Renoir.

Tendo feito seus filmes já com a doença no corpo, Vigo transportaria para suas imagens este transe do fim, “o sentido de transe†a que se refere Truffaut lembrando que não deveria, porém, “jamais perder a lucidezâ€. Há muito desta inflamação final (algo que Truffaut admirava em escritores febris como o norte-americano Henry Miller e que o cinema, por seu caráter dependente da matéria, fragmentada e de espera, nega aos diretores), que ainda se pode ver, passados tantos anos, nas imagens de L’Atalante. (Eron Fagundes)