Crítica sobre o filme "Pickpocket":

Eron Duarte Fagundes
Pickpocket Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 21/01/2009
“Nos seus olhos brilhou uma infinita felicidade; compreendia, e para ela já não havia dúvida de que ele a amava, a amava infinitamente, e que chegara finalmente o momento.â€

“Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa... mas a nossa presente narrativa termina aqui.â€

(Estes dois parágrafos que tomo por epígrafe estão nas páginas derradeiras de Crime e castigo, o maravilhoso romance de Fiódor M. Dostoievski publicado na Rússia em 1866).

Pensando bem, em Pickpocket (1959) o cineasta francês Robert Bresson refaz em imagens algumas inquietações morais oriundas em parte de suas leituras do russo Fiódor M. Dostoievski, cuja ficção ele visitou mais diretamente em duas oportunidades com seu cinema. O protagonista de Bresson é um pobre ladrão de carteiras que num certo significativo diálogo afirma a seu interlocutor que certas pessoas superiores têm o direito de desobedecer às leis e praticar o crime; assim meditando, o jovem mergulha em seu mal com toda a volúpia. Não é esta a situação central de Crime e castigo (1866), romance de Dostoievski em que vemos outro ser miserável cometer seu delito em nome de sua superioridade sobre a vítima? Se o amor de Sônia salva Raskhólnikov no final do livro, é o amor de Jeanne, sempre latente mas nunca revelado ou exposto ao longo do filme, que vai, ao cabo de Pickpocket, salivar o mal de Michel naquelas impagáveis carícias entre grades que fecham a história de Bresson.

Bresson é um artista pessoal. Se ama Dostoievski, por afinidades com a arte do espírito, não refaz estilisticamente o mestre russo. Os grandes rasgos dostoievskianos estão ausentes: nada de barroquismo espiritual. O sistema fílmico de Bresson é outro: a precisão de seu vocabulário cinematográfico está vazada num despojamento de difícil alcance, que vai aos poucos ganhando luz e inquietação. Adepto do amadorismo dos intérpretes, para chegar à raiz da alma, Bresson utiliza atores não-profissionais para atingir resultados opostos aos do neo-realismo; aquelas faces de estranha expressividade não são exteriores ou sociais, são antes algo tão primitivo ou pré-cinema quanto pode ser um suspiro espiritual.

Pensando bem, Pickpocket é a descrição minuciosa da alma de um ser amoral que topa seu lado moral ao amar a outro ser humano. Assim, aquela seqüência final –a primeira visita de Jeanne a Michel na prisão, a espera por uma nova visita, a segunda visita reveladora da paixão—é fundamental e bela: os diálogos da primeira visita, a tensão do homem que espera a nova manifestação da namorada até dar com um bilhete anunciando a nova visita, as carícias trocadas entre grades na segunda visita.

Pensando melhor ainda, Pickpocket é um daqueles raros e iluminados filmes que se torna melhor a cada revisão. Sua seqüência final (dividida nas três partes acima aludidas) é um instante de grandeza cinematográfica em que a profundidade de intenções do cineasta parece rasgar o celulóide ao meio para chegar àquelas partes mais íntimas da alma do espectador: tudo nasce da estranheza do comportamento de atores amadores cuja nova-expressão desenha com voracidade uma cena de amor tão profundo como jamais se viu, aquela ânsia de beijar-se e apalpar-se entre grades, com Michel refletindo como é tortuoso o caminho para encontrar o amor, que sempre esteve ali, à sua frente, na pessoa de Jeanne, e que sua cegueira, envolta do mal, o impedia de enxergar. As grades finais são, na linguagem de Bresson, o signo da prisão interior da personagem, da qual o amor de Jeanne procura libertá-lo. (Eron Fagundes)