Crítica sobre o filme "Saudações":

Eron Duarte Fagundes
Saudações Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 20/01/2009
Para quem conhece o cinema ágil e facilmente digerível pelo público de Brian de Palma, dar com Saudações (Greetings; 1968), um dos filmes da fase inicial do cineasta norte-americano, pode surpreender até certo ponto. Num dos extras que acompanham o disco, é o próprio De Palma quem afirma que sua visão das coisas se identifica com a visão das coisas do realizador inglês Alfred Hitchcock, muitas vezes utilizou escancaradamente a gramática e as situações do trabalho de Hitch e seu modelo de filme perfeito é Um corpo que cai (1958), o que comprova que De Palma sabe das coisas e tem gosto apurado. Ver o mundo pelos olhos de Hitchcock foi o que De Palma (e ele sabe disto, a despeito de quem pense o contrário) fez em obras como Carrie, a estranha (1976) e Vestida para matar (1980). E o pastiche formou a linguiça fragmentada que é Dublê de corpo (1984). Tudo bem. De Palma é um estilista, mesmo que pasteurize a raiz de seu próprio estilo de filmar; cabe ao espectador identificar-se ou não com o universo de De Palma, assim como ele se identifica com Hitchcock.

Mas Saudações, inédito nos cinemas brasileiros e que é agora lançado em DVD, foge à agilidade de pasteurizar que De Palma foi adquirindo depois ao imergir cada vez mais na indústria. Se a afeição de De Palma por Hitchcock o foi tornando cada vez mais abstrato em sua visão cinematográfica (A dália negra, 2006, navega bastante fora do tempo, como pinturas vazias perdidas no nada: De Palma é um formalista, e não nego que haja grandes formalistas, como o russo Sergei Paradjnaov, mas que sabem achar o sentido estético ou humano das coisas e demais são originais), num filme como Saudações, apesar de eterno recurso às citações e ao próprio filme, De Palma mantém uma relação do cinema com o seu próprio tempo histórico. Na cena inicial da narrativa um primeiro plano de um televisor onde um locutor fala da guerra do Vietnã e termina dando a palavra ao presidente Johnson para seu discurso de final ufanista cuja frase de guerra americana encerra a seqüência. Ao longo do filme, cuja fragmentação De Palma hauriu no diretor franco-suíço Jean-Luc Godard, desfilam a guerra do Vietnã (há uma simulação ou simulacro irônico de documentário de guerra numa cena, e um pouco de documentário há em todo o filme, o que é surpresa para quem curte o cineasta do suspense de anos recentes), as drogas, o sexo livre, o assassinato de John Kennedy, todo o clima de contracultura dos anos 60. Num determinado momento uma garota entra numa sala de livros e folheia o livro de entrevistas que o francês François Truffaut fez com Hitchcock; antecipação do que De Palma faria depois vampirizando Hitch, estudando (como ele próprio diz, e certamente com o livro de Truffaut debaixo do braço) a gramática do bruxo inglês? Talvez. Mas o que há nesta citação e em outras referências a cinema (a câmara passa diante das fachadas de algumas casas de exibição de filmes, alguém dentro da cena dirige os gestos duma personagem como se o filme de De Palma exibisse sua própria descontinuidade interna) é o espírito de Godard em De Palma.

Diferentemente do que faz De Palma em seus trabalhos mais recentes, e à maneira de Godard, o cineasta americano utilizou em Saudações longos planos parados em que as personagens tagarelam sem parar; a imagem pára mas o verbo vai agindo; sem engenhosidade de Godard ou do português Manoel de Oliveira para cenas assim, De Palma produz planos excessivamente estáticos e inoperantes, a funcionalidade plástica ou dramática da estaticidade do plano desanda em Saudações.

O filme é uma curiosidade histórica, mostrando um momento diferente (bem lá em 1968) da vida e da obra de Brian de Palma. Esta estruturação em progresso do filme dá um ar de improvisação à narrativa de De Palma, o que ele descartaria nos anos seguintes de sua filmografia; pela mesma época, outro norte-americano, John Cassavetes, fazia a construção improvisada e livre de um filme, mas o jovem De Palma de Saudações não exibia a segurança do sentido geral duma realização para dar a suas flutuações formais algo mais consistente do que uma picaretagem fílmica: falar de vários coisas ao mesmo tempo e não dizer nada. Saudações parece transpor uma parte da estrutura cinematográfica de A chinesa (1967), de Godard, para o mundo hippie, e menos intelectual, americano dos anos 60: De Palma, sabe-se, estava embebido da nouvelle vague e naquela sua juventude gostaria mesmo era de ter nascido na França.

Entre as curiosidades deste filme curioso (mas precário), a aparição de um jovem Robert de Niro em seus primeiros tempos. De Niro estreou no cinema no filme anterior de De Palma, The wedding party (1964), juntamente com Jill Clayburgh. (Eron Fagundes)