Crítica sobre o filme "Última Parada 174":

Wally Soares
Última Parada 174 Por Wally Soares
| Data: 19/02/2009

Em seu livro Brasil em tempo de cinema (1967) o ensaísta brasileiro Jean-Claude Bernardet conclui assim seu texto que trata de Vidas secas (1963), o filme de Nélson Pereira dos Santos: “O filme foi qualificado como naturalista e, depois do aparecimento de Deus e o diabo na terra do sol, os admiradores deste último passaram, com incompreensão, a ver em Vidas secas quase um documentário, quando ele representa o mais alto grau de abstração entre nós pelo cinema.†Questionado sobre as motivações de seu filme Última parada 174 (2008), o cineasta brasileiro Bruno Barreto afirma que não se trata da condição social do Brasil mas sim de expor a própria condição humana; e se o espectador observar bem, verá que não importa mesmo à narrativa as motivações sociais da personagem como elementos de sua principal ação no filme (o gesto final dentro do ônibus inadvertidamente seqüestrado), o roteiro de Bráulio Mantovani é utilizado pela direção de Bruno como um recheio (um colorido) para fazer o que realmente lhe interessa, atingir a emoção fácil do público (a classe média ou burguesa que freqüenta os cinemas) valendo-se duma história ambientada entre os miseráveis; mas entre o mundo desta gente e o mundo das pessoas que vão ver o filme se estabelece narrativamente um palpável muro, ignorando-se, pois, tudo aquilo que, com acuidade e restringindo-se a imagens documentais, José Padilha descarregava em Ônibus 174 (2002), este sim um retrato autêntico da condição humano-social brasileira.

Numa temporada em que o cinema brasileiro se voltou freqüentemente para as personagens mais miseráveis do país (e isto mereceu do realizador Murilo Salles, cujo filme Nome próprio, 2008, fugia a isto tudo e mereceu um injusto silêncio das platéias e dos críticos, observações irônicas sobre os estereótipos de conceitos que se criam em torno de cinemas terceiromundistas), é bom repassar a tese de Bernardet segundo a qual nosso cinema tem uma estrutura estética ligada à classe média e nunca conseguiu, mesmo em seus melhores momentos, despojar-se deste olhar burguês dos cineastas, ficando à distância do neo-realismo italiano, por exemplo. Em Linha de passe (2008), Walter Salles, a despeito de seus esforços, não se despe de uma aristocracia artificiosa de filmar. Em Maré, nossa história de amor (2007), Lúcia Murat se perde um tanto em sua historieta amorosa. Mas Breno Silveira afunda-se muito em seu melodrama dos miseráveis em Era uma vez... (2008). Barreto é tão superficial e toscamente melodramático quanto Breno, embora conheça talvez melhor (e por experiência) os artifícios da indústria que possam iludir o público educado por um filme de ação à americana.

Segundo Barreto, o que instou com ele para fazer o filme foi a figura da mãe que adotou Sandro, o que teria levado aquela mulher religiosa a acolher um perigoso garoto de rua em sua casa. Barreto diz que só uma versão ficcional poderia dar as respostas mais profundas a suas indagações. Na verdade, Última parada 174 não tem resposta para nada e muito menos faz questionamentos inteligentes; apesar de estar cercado de coisas que podem deixar perplexos a todos os espectadores, o filme faz constantes círculos no vazio. Diz Bruno: “Não sou um autor exibicionista. Meu trabalho é bom quando ele não é notado.†Ponderação difícil depois que o guindaram à condição de diretor benquisto a partir de Dona Flor e seus dois maridos (1978). Ou a declaração talvez se encaixe na hipocrisia de filmar o miserável com o mesmo jeito que se filma o burguês (condição humana seria igual em todas as classes sociais), algo denunciado por Bernardet há quarenta anos. (Eron Fagundes)

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A tragédia liderada por Sandro do Nascimento em 12 de Junho de 2000 – resultando na sua morte e na de uma jovem professora – chocou o Brasil, que assistia ao seqüestro do ônibus 174 ao vivo e em cores. Sandro se tornou um monstro, um assassino e – generalizando – a marca da marginalização brasileira, que se tornara neste momento visível para todos. Algum tempo depois, José Padilha – diretor do excelente Tropa de Elite – concebeu o documentário extraordinário Ônibus 174, que servia não só como um retrato da tragédia do 174, mas como um assolador “desmascaramento†não só da verdadeira identidade de Sandro – aquele redigo pela sociedade e marginalizado por ela – mas da própria nação brasileira, uma fábrica de Sandros invisíveis, que aguardavam apenas o toque da tragédia para serem finalmente reconhecidos. É isso – e muito mais – que o documentário de Padilha atesta, de uma forma muito nervosa e intensa. Não precisavam ter feito este Última Parada 174, que é simplesmente uma simulação do que é documentado no filme de Padilha. <> O filme de Bruno Barreto começa a narrar a história de Sandro desde o berço e – numa sacada interessante, mas mal direcionada – narra paralelamente a história de Alessandro, outro bebê nascido em circunstâncias parecidas e que poderia ter tido o mesmo destino cruel de Sandro. A idéia é boa, ao colocar em vista as vidas que estão em jogo naquele cenário aterrador e nas encruzilhadas que passam com a violência e o próprio destino. O problema é que Barreto não consegue fazê-la fluir de forma compreensível, e no início é inevitável sentir um estranhamento diante da utilização dos fragmentos. Ainda assim, é fácil de envolver com o filme ao seu início, e seguimos a construção desses personagens sempre interessados. Sempre tem algo acontecendo e a urgência da história acaba mexendo com você. O problema é que o filme não vai aos limites e fica preso ao simples entretenimento. Não temos erros gritantes ou defeitos horríveis na metragem, mas sempre ficamos na ânsia de que o filme saia do “interessante†e finalmente nos arrebate. Isso, porém, nunca acontece. E, apesar de ser um filme competente dentro daquilo que se pretende, não prova ser necessário ou mesmo faz jus à história que o inspirou.

Mas – até seu ato final – o filme não incomoda e não traz motivos para grandes reclamações. O roteiro tem bons momentos e apenas a direção de Barreto condena-se ao simplista e ao convencional. Mas temos uma parte técnica boa, com fotografia, edição e trilha sonora competentes, que dá ao filme uma estética constantemente madura, ainda que o filme em si esteja bem longe de tal amadurecimento. O que realmente dilui o efeito do filme na audiência é seu ato final. Quando finalmente esperamos que as peças se unirão e o filme irá arrebatar, somos decepcionados pela frivolidade do retrato do ato em si do seqüestro, que é rápido, tolo e nem um pouco memorável. Todo o peso emocional do momento desaparece para dar lugar a um desfecho esquemático e frio, que revela uma tendência preguiçosa do próprio roteirista em não desenvolver as emoções ali em jogo. É muito decepcionante ver o que andava relativamente bem sair do rumo completamente pela simples covardia do diretor e do roteirista em ousar. Se Ônibus 174 de Padilha te manda para fora aterrorizado, assombrado e arrepiado, o filme de Barreto não te traz sentimento algum a não ser a simples decepção.

As boas atuações, a história tragicamente comovente e as interessantes alfinetadas sociais e humanas empregadas ao longo do filme não conseguem superar o sentimento nada ameno deixado pelo final do filme, que realmente o condena completamente ao esquecimento. É como se os cineastas tivessem definhado diante do que tinham em mãos. Nada como o que ocorre no documentário. A comparação entre ambos se torna, portanto, inevitável. Não é que Última Parada 174 não seja bom – porque ele é. O problema é que ele precisava ser mais. Mas impõe um limite a si mesmo que o inibe de nos cativar e permanecer conosco. E a história de Sandro tinha todos os méritos para conseguir isto. Barreto, porém, estaciona no “bomâ€, e não se interessa em ir procurar uma vaga mais ousada. (Wally Soares – confira o blog Cine Vita)