Crítica sobre o filme "Medos Privados em Lugares Públicos":

Eron Duarte Fagundes
Medos Privados em Lugares Públicos Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 20/02/2009

Autor de obras-primas extremamente cerebrais como Hiroshima, meu amor (1959), O ano passado em Marienbad (1961) ou Meu tio da América (1980), o cineasta francês Alain Resnais adota um controlado sentimentalismo em seu mais novo filme, Medos privados em lugares públicos (Coeurs; 2006). Não chega a acercar-se daquelas ternuras sentimentais de François Truffaut, um de seus companheiros de Nouvelle Vague; mesmo para abordar pessoas sentimentais, cheias de feridas emocionais, Resnais usa muito os diagramas visuais ditados por seu poderoso cérebro. Mas, como já se vira antes em Amores parisienses (1997), a trama mais diretamente novelesca é o que aparece na carne do celulóide de Resnais. Ocorre que esta simplicidade é falsa: o realizador continua interessado em reflexões e mutações lingüísticas.

Um exemplo formal. A neve cai o tempo inteiro (é inverno em Paris) e às vezes parece que está caindo neve mesmo dentro das casas. Uma cena em que a personagem de André Dussolier, o corretor de imóveis Thierry, e a de Sabine Azéma, a colega de trabalho de Thierry, Charlotte, estão a uma mesa. Num primeiro plano das mãos parece que estas mãos de ambos (mais a dele) estão cobertas de neve; o intrigante é que o cenário é no interior da casa, apesar de uma certa construção abstrata de que se reveste este “desenho de interioresâ€. O detalhe das mãos cobertas de neve (mesmo dentro de casa) inquieta o observador: terá visto direito? Os planos seguintes são planos médios da conversa entre as duas personagens, a neve continua a cair em planos tão próximos que fica complicado saber se as criaturas estão dentro ou fora da casa, esperamos por um novo plano das mãos que Resnais habilmente nos sonega. O plano geral que encerra a seqüência elimina a neve do cenário, tons acalorados e amarelados preenchem a tela: vemos as personagens inteiramente protegidas dentro de casa, à distância do inverno (físico e sentimental). Como sempre fez, desde O ano passado em Marienbad, Resnais interfere nas marcações realistas do cinema: em Medos privados estas interferências são sutis, quase imperceptíveis, se confundem com um certo naturalismo de filmar, atingem pontos secretos de nosso olhar à maneira daqueles desvios surrealistas do espanhol Luis Buñuel.

Outro exemplo da complexidade de Resnais é a construção duma personagem tão cheia de variações quanto Charlotte, a assistente do corretor de imóveis Thierry. Religiosa, ela tem seu lado diabólico; puritana, ela apresenta sua subterrânea sexualidade quando se torna enfermeira dum velho irascível de quem só sabemos a voz e os impropérios. Charlotte é o ser humano integral. Para atingir seus efeitos, Resnais contou com o desempenho deslumbrante de Sabine Azéma, recentemente vista em Pintar ou fazer amor (2005), de Arnaud e Jean-Pierre Larrieu. Ela incorpora a personagem com um sarcasmo íntimo avassalador. Azéma está com Resnais desde os anos 80 e compôs um trio afetivo com os mesmos Pierre Arditi e André Dussolier que estão em Medos privados, no filme Mélo (1986).

Partindo duma peça teatral do inglês Alan Ayckbourn, o mesmo que forneceu o drama para a última obra-prima de Resnais, Smokin/No Smoking (1993), o cineasta sabe utilizar o espaço cinematográfico para dar vida fílmica a um texto de outro meio de expressão. Laura Morante na pele de Nicole começa o filme em busca dum apartamento para viver com seu noivo, Dan, o desempregado vivido por Lambert Wilson, da mesma maneira que Maria Schneider procura um apartamento para morar com Jean-Pierre Léaud na parte inicial de O último tango em Paris (1972), do italiano Bernardo Bertolucci; Nicole nesta busca do imóvel é atendida pelo corretor Thierry, um doce André Dussolier; o casal está em crise e logo se separará; o corretor Thierry está às voltas com um caso sentimental não resolvido com sua colega Charlotte (Azéma), uma estranha mística; esta nas horas depois do escritório vai cuidar do intratável ancião acamado (só temos contato com a personagem pela voz de Claude Rich) que é pai do atendente de bar Lionel (Arditi); o corretor tem uma irmã mais nova (Gaëlle, interpretada por Isabelle Carré, de Quatro estrelas, 2006, de Christian Vincent) que, atendendo a um anúncio de jornal, vem a flertar no bar de Lionel com o ex-namorado de Nicole, Dan que se apresenta a Gaëlle como Martin assim como Gaëlle se apresenta a ele como Sofia. A trama é clareada com lucidez graças à habilidade de montagem de Resnais, assim como o bombardeio biológico de Meu tio da América nada tinha de obscuro porque Resnais sabia filmar com profundidade e clareza; mas, não se engane o espectador, Medos privados em lugares públicos não é tão simples quanto parece: como o quadro de um velho na parede da casa de Thierry, há no filme segredos que não são revelados, ambigüidades e enigmas que, se estão longe de ser outro Marienbad, não podem ser confundidos com a  trivialidade do cinema de sempre. Na viagem que vai do cérebro ao coração, Resnais permanece uma referência obrigatória. (Eron Fagundes)