Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/02/2009
O ator norte-americano Harvey Keitel, que já foi um indivÃduo napoleônico no inÃcio de sua carreira num filme do inglês Ridley Scott, interpreta um obstinado diretor de cinema que, travestido de pesquisador de filmes perdidos, cruza a Europa central, na região dos Bálcãs, para achar três rolos de filmes rodados no inÃcio do século XX numa técnica que não permitia a revelação: é esta a matéria, tão clarividente quanto obscura, de que é feito Um olhar a cada dia (Le regard d’Ulysse; 1995), do grego Theo Angelopoulos, uma das obras básicas do cinema na década de 90. Recentemente, o cineasta brasileiro Walter Carvalho homenageou Angelopoulos e seu filme, ao refazer de maneira muito sintética e esquemática, as longas e persuasivas tomadas que a câmara do realizador helênico apõe à s imagens da estátua de Lênin e suas andanças a bordo duma embarcação Danúbio adiante; é igualmente perceptÃvel a influência do processo estético de Um olhar a cada dia sobre Ararat (2002), do canadense Athom Egoyan, especialmente na maneira um tanto quanto mitológica com que trata as questões das pessoas ligadas ao cinema com seu objeto existencial ou de prazer, o próprio cinema.
Mas a magnÃfica, intensa e desdobrada sequência das imagens da imagem de Lênin cruzando um rio tem uma grandiosidade de realização que remete necessariamente à quela imagem de Cristo dependurada de um helicóptero que abre A doce vida (1960), do italiano Federico Fellini, substituindo-se agora Cristo pelo marxismo. Porém o cinema de Angelopoulos é muito mais herdeiro das contemplações metafÃsicas de outro italiano, Michelangelo Antonioni, a imagem para, estaciona, a plasticidade fÃlmica se autocontempla, o espetáculo perde seu embalo mais “dançado†(dança que há em Fellini) mesmo naquelas onÃricas cenas em que as personagens burlescamente dançam; a insistente, divagante e exasperante sequência na neblina em Um olhar a cada dia parece estender as pesquisas formais duma cena de neblina de Identificação de uma mulher (1982), de Antonioni.
Um olhar a cada dia é a busca da imagem que não existe. No inÃcio do filme alguns diálogos da faixa sonora está fora da imagem, melhor, não se refere à imagem que os está mostrando. No inÃcio do século um homem filmou três rolos de celuloide numa técnica que ainda não tinha uma técnica correspondente de revelação. Que imagens viu este homem? Seu olhar virgem e não partilhado por ninguém seu contemporâneo é perseguido por um homem quase cem anos depois. A arte não mostrada. A arte nas trevas. A arte na neblina, com suas situações invisÃveis, como mostra a certa altura Um olhar a cada dia.
Outra tocante participação é a do ator sueco Erland Josephson como um arquivista de filmes em Sarajevo a que a criatura de Keitel chega para finalmente dar com as imagens adormecidas por noventa anos. Na sala repleta de rolos de pelÃculas, a personagem de Erland cita vários clássicos, de O nascimento de uma nação (1915), de D. W. Griffith, a Persona (1966), de Ingmar Bergman. Bergman, como não poderia deixar de ser, pois Erland foi ator caracterÃstico do genial diretor sueco. (Eron Fagundes)