Crítica sobre o filme "Deserto dos Tártaros, O":

Eron Duarte Fagundes
Deserto dos Tártaros, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 16/03/2009

O romancista italiano Dino Buzzati (1906-1972) foi comparado com o ficcionista tcheco Franz Kafka pela forma como, em cenários absurdos, trata da inutilidade da espera e dos comandos sem sentido que muitas vezes regem o mundo (de uma certa maneira, Kafka é o autor fundamental do século XX porque foi o autêntico inventor —ou antecipou?— do mundo dos dias de hoje). Em O deserto dos tártaros (1940), o livro mais festejado de Buzzati, se conta uma história que tem as marcas duma parábola religiosa sobre a contemporaneidade: o militar Giovanni Drogo é destacado para servir no remoto forte de Bastiani, onde, de tédio em tédio, aguarda a deliberação dum pedido de transferência e partilha dos rumores de seus colegas segundo os quais em algum momento os inimigos tártaros deverão atacar; mas este ataque nunca chega; no fim Drogo adoece e então parece que o inimigo chegou, mas a glória não virá para Drogo, pois doente ele será transportado numa carruagem para tratamento dando lugar a indivíduos sãos no combate. Aquela burocracia que tanto incomoda as personagens de Kafka se manifestam em Buzzati na análise da estupidez marcial do militarismo, sua fé cega no regulamento.

Foi um cineasta italiano, Valério Zurlini (1926-1982), quem ousou transpor para a tela o estranho romance de Buzzati. O deserto dos tártaros (Il deserto dei tartari; 1976) é o testamento cinematográfico de Zurlini e difere um pouco daquele modelo intelectual e introspectivo adotado pelo realizador nos anos 60 numa obra-prima como A moça com a valise (1960) e ainda nos anos 70 no extraordinário A primeira noite de tranquilidade (1972); mas não deixa de manter intactos o rigor formal e a extrema dignidade de filmar que são a própria coerência artística de Zurlini.

A notável utilização dos desérticos cenários é um dado que dá profundidade plástica à linguagem de Zurlini neste filme. Sua câmara adota os enquadramentos tangentes com o cenário e sua montagem está cheia de segundos sentidos, captando com senso de cinema os delírios simbólicos de Buzzati. O elenco internacional de que se vale Zurlini (Jacques Perrin, Vittorio Gassman, Jean-Louis Tritignant, Philipe Noiret, Max Von Sydow) não impede o controle exato que o realizador tem de seus meios: tudo é tão contido quanto preciso em cena.

Se o romance de Zurlini segue as divagações doentias de Drogo depois que embarca na carruagem que o retira da fortaleza de Bastiani justamente no momento da glória, o filme de Zurlini centra o gesto final da câmara no melancólico primeiro plano da face adormecida do militar azarado enquanto a carruagem se afasta do local-centro da narrativa que se acabou de ver. O deserto dos tártaros, o filme de Zurlini, é um oásis cinematográfico. Como o é o romance de Buzzati na literatura.