Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 03/04/2009
As inquietantes mutações do cinema do italiano Roberto Rossellini representam sempre uma busca de sentido. Seus derradeiros filmes, aqueles dos anos 70, aparentemente didáticas biografias de grandes homens, parecem, a um olhar superficial, distantes de seu neorrealismo inicial, voltado para o indivÃduo comum, mas o humanismo exercido pelo cineasta é idêntico numa e noutra fase de sua filmografia. Descartes (Cartesius; 1974) é mais uma de suas agudas visões de filósofos rodadas para a televisão italiana num momento em que Rossellini passava a descrer do cinema de consumo e partia descaradamente para narrativas intelectuais e exigentes; como em Sócrates (1970) e em Santo Agostinho (1971), também em Descartes o realizador peninsular capta cinematograficamente a essência de um pensamento filosófico, fazendo antes um cinema de filosofia que uma filosofia audiovisual estática (neste aspecto, Rossellini se aparenta do francês Eric Rohmer e do alemão Alexander Kluge, cada um dos três realizadores utilizando a narrativa de ideias a seu modo), e esta capacidade de penetrar no Ãntimo duma personagem se deve à agudeza fÃlmica de Rossellini, que tanto investigou nos anos 40 os analfabetos pescadores romanos como nos anos 70 acercou sua câmara de espÃritos somente na aparência mais complexos, com igual transcendência e profundidade. Em Rossellini, como em nenhum outro cineasta, o cinema não tem preconceitos nem limites: tal como o pensamento de sua criatura, o francês René Descartes (1596-1650), indivÃduo formado pelo colégio de jesuÃtas de La Flèche, que depois ganhou o mundo, foi radicar-se nos PaÃses Baixos, terçou armas com sábios de seu tempo como o matemático Isaak Beeckman, leu fascinado a poesia erótica seiscentista de Théophile de Viau (lido por Descartes num determinado momento do filme e depois a evocação do libertino homem de versos aparece numa cena de intolerância daquela época ainda bastante medieval, mesmo com o Renascimento cultural e cientÃfico); Descartes surge na realização de Rossellini como um espÃrito soberbo que se vê expandir-se e concretizar sua grande obra, o Discurso do método (1637).
O método de Rossellini em Descartes é feito de puro rigor e ausência de concessões. O fascÃnio crÃtico de Descartes é um dado cinematográfico notável. Rossellini não poupa as discussões metafÃsicas da época e, atualizando-as com seu gênio de filmar, não as vulgariza, como é praxe nos dias de hoje e talvez também na época em que Rossellini filmou Descartes. A pouca divulgação do trabalho televisivo de Rossellini é um atraso cinematográfico e crÃtico, assim como o é a ausência por aqui dos filmes para a televisão feitos pelo alemão Alexander Kluge; para quem acompanha com alguma atenção a história do cinema dos últimos trinta anos, a influência estética de Descartes se evidencia sobremaneira. O método cinematográfico de Rossellini em Descartes agiu bastante sobre o que se vê numa das obras-primas do cinema dos anos 90, Wittgenstein (1992), do inglês Derek Jarman: a mesma profusão de palavras e ideias que se esforçam por dar o retrato dum espÃrito filosófico atormentado por suas dúvidas e imprecisões e vão ter na verdade no próprio tormento destes espÃritos raros. (Eron Fagundes)