Crítica sobre o filme "Leitor, O":

Wally Soares
Leitor, O Por Wally Soares
| Data: 14/05/2009
Frágil, complexo e cheio de pequenas polêmicas, o texto original de O Leitor é um que requer um tratamento extra cuidadoso. Qualquer nuance lida errada, emoção extraviada e diálogo mal direcionado pode fazer ruir o fenomenal conto humano explorado pelo aparentemente rico livro de Bernhard Schlink, que é adaptado com dignidade e sofisticação por David Hare (As Horas), competente quando se diz nuances e introspecção. E o que mais existe neste belo retrato de emoções humanas se corroendo são tais nuances, despidas num cenário dos mais introspectivos e densamente comoventes. Quando O Leitor tem início, começa um retrato já lamurioso de um homem que parece carregar um peso consigo mesmo. E, retratando este homem, Ralph Fiennes é ótimo ao não precisar dizer nada para nos convencer de sua situação, comunicando seus sentimentos em convulsão. É a partir daí que tem início as memórias do personagem, aos quinze anos, começando um caso com uma mulher imensamente mais velha que começa aos poucos a se concretizar como um caso tortuoso, tanto para a audiência, que começa a perceber o destino que tomará o casal, quanto para os próprios personagens, presos entre emoções e sentimentos paralelos mais fortes que o próprio amor que os une.

O primeiro ato do filme é então palco para este caso ardente entre duas pessoas distintas, unidas por algo que vai além da solidão na qual se encontravam. Stephen Daldry (As Horas) aqui altera seu clima e seu tom, deixando as coisas mais interessantes, mas igualmente conflitantes. O cenário aos poucos começa a se fechar (destaque à fotografia), e tudo se torna um tanto íntimo, bem carregado de simples (e às vezes complexas) emoções. O intimismo dá lugar à uma clara identificação com o casal. Mas as próprias cenas de sexo (várias) deixam a desejar ao cair no convencional e em tomadas simplistas. Isso acaba, contraditoriamente, deixando as coisas mais frias. Felizmente, porém, Daldry não está trabalhando sozinho, e a dupla intensa de David Kross e Kate Winslet conseguem se articular tão bem que toda e qualquer frieza é quase que automaticamente pulverizada pela presença constante que ambos mantém durante todo o primeiro ato, que atinge momento de lirismo e beleza profunda. Quando o ato se finaliza porém, o clima e o tom do filme muda por completo. A transição pode ser difícil, mas é necessária. Especialmente por caracterizar a catarse do personagem de Michael, e seu próprio amadurecimento.

Já no segundo ato, o ritmo tende a cair levemente, mas nossa atenção continua veementemente vidrada nas explosões emocionais constantes entre todos os personagens. É aqui que inicia-se o drama de tribunal, o julgamento não só de Hanna Schmitz, mas de Michael Berg, que se submete ao vergonhoso quando definha diante de sua incapacidade moral de reconhecer e revelar. É um momento devastador do filme. Seu efeito é forte, sua instigação inevitável e as atuações encontram aqui seus piques. Kross, que já havia surpreendido imensamente ao início com seu tremendo naturalismo, nos incita sentimentos diversos, e a própria Winslet, cuja personagem foi tratada com uma misteriosidade soberba ao início, aqui se escancara à limites devastadores. A emoção é difícil de conter, e o debate, ainda mais. As questões de culpa, moralidade, justiça e ética aqui levantadas ecoam fortemente e são o suficiente para transformar O Leitor numa sessão obrigatória. O texto acaba se revelando, ao fim, a principal virtude que rege toda a trama.

Finalmente chegamos ao terceiro e último ato, que tem como protagonista Ralph Fiennes e sua melancólica atuação. O ritmo aqui desanda de vez, e até estica um pouco a duração do filme. Mas os personagens são tão fascinantes que continuamos a assistir com uma avidez quase natural. Até porque Daldry pode ter pecado, mas não deixa de ser um contador de histórias extremamente hábil. Aqui ele encontra sincronia com um elenco afiadíssimo – Winslet faz uma Hanna de forma tão forte que é impossível conter a emoção ao fim – e uma parte técnica bastante contundente. Além de uma fotografia bastante adequada, temos bons figurinos e, principalmente, uma linda trilha sonora de Nico Muhly, essencial para toda a composição rítmica e emocional do longa. Mas realmente não existem motivos maiores para se ver ao filme – não contando Winslet, claro – que não sejam o de testemunhar um borbulhante retrato de emoções humanas caoticamente entrando em encontros e desencontros. É de uma simplicidade horrível rotulá-lo como um “drama histórico†ou “filme de Holocausoâ€. O Leitor ecoa nesses aspectos, trazendo consigo introspecções históricas e fundamentais acerca dos acontecimentos ligados à Auschwitz, mas é sobre muito mais. É sobre a culpa, o receio e a vergonha. É também sobre a força das palavras. Um ensaio sobre o mudismo. Sobre nossa capacidade de mudança e de mudar em meio às palavras, mas também sobre como uns escolhem permanecerem mudos diante da vida, e do amor. (Wally Soares – confira o blog Cine Vita)

.

O diretor de cinema inglês Stephen Daldry faz sua leitura do Holocausto em O leitor (The reader; 2008). O Holocausto não está em cena, mas seus reflexos e suas sombras naquilo que vem depois: como algozes e vítimas vivenciam as consequências de suas experiências nos campos de concentração nazistas na sociedade que se erigiu destes escombros humanos. O filme parte de um livro de Bernhard Schlink. O roteiro foi escrito com precisão cinematográfica pelo hábil e agudo David Hare. A direção de Daldry utiliza com clareza mas sem grandes voos  um sentimentalismo controlado para expor, no nervo de sua narrativa, a história evocativa do relacionamento dum garoto que depois seria estudante de Direito com uma mulher madura que depois se descobre foi guarda dum campo de concentração; as sequências no tribunal em que ele como jovem acadêmico de Direito acompanha o processo dela e o julgamento e depois no final quando ele, já homem feito e pai de uma menina, localizando-a na prisão, lhe remete fitas cassetes de algumas leituras que fez de livros clássicos, evocando o primeiro contato dos dois quando ele, adolescente e estudante, leu livros para ela, analfabeta e aparentemente só interessada em transar com ele como extensão de instinto maternal, estes dois blocos de sequência (no tribunal e a remessa e audição das fitas) são os pontos mais emocionantes de um filme às vezes excessivamente frio e distante no formalismo habitual de Daldry.

A afeição de Daldry pela literatura, que já se materializava no belo As horas (2002), baseado num romance do norte-americano Michael Cunningham e que tinha no centro a turbulenta personalidade literária da inglesa Virginia Woolf, retorna nas várias referências de O leitor, uma delas maravilhosa, recitando mais de uma vez a fascinante frase inicial do conto A dama do cachorrinho (1900), do russo Antono Tchecov. A identidade de Daldry com o processo de formação de um jovem, exposto com as crueldades dos episódios de O leitor, já podia ser topado no filme de estreia do cineasta, Billy Elliot (2000).

A produção executiva é de Anthony Minghella e Sidney Pollack, que faleceram antes da conclusão do filme e a quem o realizador dedica seu trabalho. David Kross na pele do garoto está um tanto quanto instável. Ralph Fiennes como o garoto na maturidade adota sua costumeira correção britânica. Mas o centro interpretativo é inegavelmente Kate Winslet, que, fugindo aos frenesis de sua casada neurótica de Foi apenas um sonho (2008), do americano Sam Mendes, segue um caminho mais concentrado de atuar e por isso de resultados mais árduos porém mais compensadores. E saliente-se ainda a presença de Lena Olin, vivendo duas personagens, a judia velha (Rose Mather) na cena do tribunal e depois no final a filha desta judia (Ilana Mather) quando recebe a visita da personagem de Ralph Fiennes (uma cena que perturba pelo constrangimento das criaturas em cena); a sueca Lena foi atriz de alguns filmes de Ingmar Bergman (em Depois do ensaio, 1984, ela vivia a jovem atriz que começa o filme perturbando as ações do diretor de teatro interpretado por Erland Josephson).

No frigir dos ovos, deparamos um espetáculo de equilíbrio, sem grande força ou profundidade, mas que abre, de maneira não inteiramente simplificada, feridas que ainda e sempre assombram a presença do homem do século XX neste planeta. (Eron Fagundes)