Crítica sobre o filme "Hora do Lobo, A":

Eron Duarte Fagundes
Hora do Lobo, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 16/05/2009
O alegórico fantasmagórico parece dirigir a mão do cineasta sueco Ingmar Bergman em A hora do lobo (Vargtimmen; 1967); as coisas se passam de maneira não realista, como simbolismos espirituais, mas a intensa crueldade daquilo que Bergman expressa com suas imagens é supra-real, atingem o nervo da realidade de maneira incômoda. A encenação não tem a objetividade do realismo, tem desvios oníricos, incursões pelo pesadelo, vizinha com a fantasia do terror à maneira do expressionismo alemão (uma das fontes do cinema de Bergman), mas os estados espirituais filmados pelo cineasta são muito palpáveis e consistentes: não é uma fuga pela via simbólica, é um encontro dos símbolos com seus significados metafísicos.

As imagens em preto-e-branco do fotógrafo Sven Nykvist carregam a tensão temática que o filme contém. O rosto de Liv Ullmann, centrando-se no olhar inquisitorial e na dureza de sua dicção, comanda boa parte da ação narrativa com divagações e leituras do diário da personagem de Max von Sydow topado pela criatura de Liv. Alma, a principal personagem feminina, vive numa ilha com seu conturbado marido Johann. Alma era a enfermeira de Persona (1966), esta enfermeira era a interpretação por Bibi Andersson e permutava a personalidade com a atriz Elizabeth Vogler, vivida por Liv. No plano final do monólogo de Alma, em A hora do lobo, a personagem parece dirigir-se para o espectador: “Há uma questão na qual tenho pensado muito. Quero fazer uma pergunta. É o seguinte. Não pode ocorrer que uma mulher que tenha vivido muitos anos com um homem, não pode ocorrer que ela acabe, afinal, assemelhando-se a ele? Quero dizer, ela o ama e procura pensar e ver as coisas como ele.†Quer dizer. Alma se transforma em Johann, ao longo do filme, especialmente depois que ele no final é espancado por uma fauna de pesadelo que poderia não passar de seus fantasmas simbólicos, assim como a enfermeira Alma de Persona a certa altura se apropria da história e da personalidade de Elizabeth Vogler. Em A hora do lobo há uma Vogler, Verônica Vogler, que é amante de Johann e quem lhe dá o físico é Ingrid Thulin.

A hora do lobo vai circulando as obsessões de Bergman e está entre aqueles filmes que mais aproximam o espiritualismo do cineasta duma narrativa de horror. É assustador, como Gritos e sussurros (1972), embora não tão profundo. Sem a complexidade de Persona, é mais alucinado e também mais sensorial em suas encenações. Numa cena, um plano rápido, numa ambientação elegante, refinada, renascentista, alguém tira do rosto uma máscara transparente, uma segunda pele falsa: o que escondemos por trás de nosso rosto? Uma outra seqüência mostra uma encenação breve dum trecho de “A flauta mágicaâ€, de Mozart, referindo a paixão por esta peça musical que geraria o filme de Bergman de 1975: “a mais bela e a mais tortuosa música que jamais foi compostaâ€, afirma uma personagem de A hora do lobo. Johann, que é pintor e no início do filme estava pintando sua própria mulher, o modelo humano mais próximo, afirma: “Eu me chamo de artista na falta de expressão melhor. Na minha criação não existe nada de autoexplicativo, a não ser a compulsão.†Em O rosto (1959) um artista, o mágico, também representado por Max von Sydow, já figurava os tormentos da arte que em A hora do lobo desfiguram o próprio visual narrativo. Nestes filmes Bergman está falando também de si mesmo e de sua arte. (Eron Fagundes)