Só assistindo ao filme é que me dei conta de que não havia sido contada ainda, no cinema, ao menos em termos de ficção, a história de como foi o movimento de libertação gay (o chamado Gay´s Lib) nos anos 70, em San Francisco, e dali para o resto da América. Lembrei de ter lido a respeito, já que era um constante consumidor da Playboy, que ia registrando toda a luta contra a censura e a repressão, inclusive a dos gays. Depois, o documentário “The Life and Times de Harvey Milk†ganhou o Oscar® da categoria, em 1985.
Ou seja, não entre por engano, pensando que é um filme sobre vacas e laticÃnios. É bom saber que Harvey Milk (1930/1978) foi um lÃder do movimento que foi assassinado, junto com o prefeito de San Francisco, George Moscone naquele momento, por alguém de dentro da administração. Não pelo povo, ou um fanático, ou seja, um elemento externo. Mas, pior ainda, por uma figura doentia, próxima, quase amigo dele. E que, como sempre, escapou de um castigo maior e mais consequente. O filme não faz nada para facilitar a nossa apreciação, nem o torna mais simpático, mais amável. Não chega nem mesmo a dizer exatamente quem era a pessoa de Harvey Milk, nem desvenda sua personalidade, que ao final continua um mistério. É que o diretor Gus Van Sant, assumidamente gay e que varia entre filmes de arte, de pesquisa (como “Elefante†- 2003 e “Paranoid Park†- 2007) com besteiras - como uma refilmagem de “Psicose†(1998), e acertos como “Garotos de Programa†(1991), com River Phoenix -, aqui está em um bom momento.
Optou por narrar tudo como se fosse um documentário, ou seja, essa é a linguagem do filme, que reproduz a trajetória de Harvey Milk a partir de um depoimento que ele fez sozinho, para um gravador, quando soube que estava ameaçado de morte. A partir daÃ, vêm os flashbacks, nem sempre positivos. Ele tem um caso com um rapaz mais novo (James Franco), e depois com um latino perturbado (Diego Luna) mas, fora alguns amassos, ficamos sabendo pouco sobre a psicologia dos envolvidos. Ao final, aparecem fotos e o que sucedeu com os que vão surgindo na história, e só assim entendemos algumas coisas, porque todos os personagens são apenas vultos de passagem. Não é como num filme dramático tradicional, onde os personagens têm chance de se explicar, de dizer a que vieram.
Isso prejudica muito o elenco, que é todo muito corajoso e, por vezes, irreconhecÃvel, atrás dos bigodes e cabelos, mas raramente tem chance, nem mesmo Josh Brolin (como o assassino, também mal delineado), ou o garoto de Speed Racer (Emile Hirsch), que mudou de cara novamente. Ou seja, não é um filme no qual o público vai embarcar facilmente. É um semidocumentário importante e interessante, mas sua maior chance de premiação é mesmo com Sean Penn, deixando ver que é baixo, não muito atraente, se expondo com coragem (mas nada muito ousado também). Ele comentou que seu maior choque, vendo o filme, foi reparar como estava envelhecido e cheio de pés de galinha! Só que o roteiro não lhe dá as chances devidas e, como ganhou prêmio muito recentemente, pode ser que não leve o Oscar®.
“Milk†foi indicado nas categorias de figurino, ator, ator coadjuvante (Josh Brolin, filho do ator James Brolin, enteado de Barbra Streisand, casado com Diane Lane, e um dos ‘Goonies’), montagem, direção, filme, roteiro (Dustin Lance Black, que é mais conhecido pela serie de TV “Big Loveâ€). (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 21 de fevereiro de 2009)
.Milk, a voz da igualdade (Milk; 2008) é um filme que se insere coerentemente no espÃrito de irreverência e contestação de seu realizador, o norte-americano Gus Van Sant; mesmo que não chegue ao radicalismo de propostas de obras como Últimos dias (2005) e Paranoid Park (2007), Milk não é, como se escreveu por aqui, uma narrativa acadêmica ou conservadora; basta observar com atenção sua fragmentação documental e seu intransigente olhar crÃtico para afastar Van Sant dos costumeiros lances comerciais de Hollywood. É bem verdade que o cineasta resolveu facilitar, em termos de ritmo visual e de utilização dos recursos de produção, a assimilação do espectador habitual; mas se poderia falar antes em uma certa adequação que em concessão —e no meio dos filmes convencionais que se está vendo neste inÃcio de temporada em Porto Alegre, Milk se sobressai, embora sem muito alarde.
Trata-se duma cinebiografia ao mesmo tempo seca e apaixonada de Harvey Milk, homossexual que liderou, com dignidade e vigor, no coração dos anos 70 nos Estados Unidos, a luta pelos direitos dos dissidentes sexuais masculinos e estendeu esta luta para a defesa de todas as minorias oprimidas e humilhadas, como reza a óbvia mas necessária cartilha do discurso final de Milk na voz-over de Sean Penn, em desempenho extraordinário.
O filme é um pouco contado pela voz de Milk/Penn no gravador documentando sua vida. Depois Van Sant vai juntando os fatos da vida de Milk sem maiores voos, mas com uma partição ali entre o disperso e o criativo. Do ponto de vista formal, a experiência do cineasta nem sempre se solidifica. Mas a autenticidade de seu relato acaba por conquistar o espectador, seja de que latitude moral ou visual ele for.
Milk recupera também para o observador de hoje a força de contestação de uma geração. A que foi jovem no interior dos anos 70. (Eron Fagundes)