Crítica sobre o filme "Vergonha":

Eron Duarte Fagundes
Vergonha Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 20/07/2009
A câmara está imóvel acompanhando o diálogo de duas personagens, um casal do interior agrícola da Suécia dos anos 40. Ele está de costas para a câmara, o máximo que podemos ver-lhe é o perfil do rosto. Ela está diante dele, sorri, fala abundantemente, ele quase limita-se a responder-lhe. Ela fala da necessidade de ter um filho, está chegando aos trinta anos de idade, logo poderá ser um tanto tarde. Ele rejeita com sutileza a premência do filho, é amável mas resistente com ela. O longo plano fixo que se detém nas palavras do diálogo e na rigidez do comportamento dos atores é quebrado por uma brusca aproximação de câmara quando ele alega para ela que ele é um determinista. A câmara que se aproxima capta a perplexidade dela diante da alegação, sua pergunta automática para saber o que é determinista. Na verdade, a surpresa dela acompanha o desvio de conversa daquele diálogo íntimo do casal sobre um futuro filho: que é que um conceito filosófico estranho ali, o determinismo, vinha fazer alterando os conceitos e o ritmo daquela conversação? Esta cena de Vergonha (Skammen; 1968) é característica da mestria estilística do realizador sueco Ingmar Bergman, sua capacidade de aplicar sua linguagem cinematográfica para revelar as inquietações íntimas de suas personagens.

Vergonha narra a dura trajetória dum casal perdido num rincão sueco na época da guerra. Como em todos os filmes de Bergman, e neste com o giro em torno dos aspectos exteriores da sociedade (o fascismo, a violência de quem detém as armas e o poder), o horror e a humilhação expõem as criaturas bergmanianas. Com secura e planos imóveis, Bergman mais uma vez demonstra sua ojeriza pelos longos movimentos de câmara, coisa que ele recriminava num de seus êmulos, o cineasta russo Andrei Tarkovsky. O resultado é um filme áspero, de emoção quase inacessível.

Há uma sequência em que a protagonista e seu amante (sim, ela vem a ter um amante depois das primeiras humilhações da guerra) embebedam o marido dela e depois, a um canto, os dois amantes se põem a conversar sobre suas intimidades. Surge a medo na faixa sonora o badalar de sinos. É quase inaudível este badalar. E de tão inaudível os sons soam longínquos, como se não pertencessem ao filme. Quando os amantes saem para a rua, dirigindo-se para sua alcova amorosa, é que ouvimos fortemente os sinos. Com a sutileza da utilização de som Bergman estabelece a cisão entre os dois mundos morais que está retratando. Sinos vêm da igreja e a igreja da formação de Bergman é protestante: o rigor estético de Vergonha é densamente protestante.

Os atores Max von Sydow e Liv Ullmann, o casal de interioranos suecos, são os mesmos de A hora do lobo (1968), ambos os filmes rodados e lançados quase ao mesmo tempo. É um pouco como se Bergman executasse duas partituras com as mesmas notas, duas partituras muito diferentes apesar de certas características comuns. A ambientação bélica é rara na filmografia de Bergman. O Ovo da serpente (1979) repetiria um pouco da visão sombria dos tempos de guerra, mas o fazia então na Alemanha, onde Bergman se exilou depois de seus problemas com o fisco sueco. No fim de Vergonha, após a longa travessia de barco em busca da paz, a personagem de Liv conta à de von Sydow um sonho, o sonho com uma filha deles. Seria tão simples se as complicações humanas não aparecessem no rumo natural das coisas. (Eron Fagundes)