Crítica sobre o filme "Blaise Pascal":

Eron Duarte Fagundes
Blaise Pascal Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 20/07/2009
Por volta dos dezesseis anos de idade, o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) descobriu, na biblioteca de seu pai, um complicado livro de matemática escrito por um dos luminares da época, Girard Desargues, e, mesmo com o aviso paterno de que se tratava de “lições das trevas†e que um adolescente como Blaise não entenderia, decidiu ler. Ali nasceu o matemático e pensador Pascal, que imediatamente escreveu, adolescente pois, seu Tratado sobre as seções cônicas, onde procurava solucionar as “lições das trevas†de seu antecessor Desargues. Um dos muitos ditos de Pascal ajusta o seguinte: “Toda a dignidade do homem está no pensamento.â€

Roberto Rossellini, o grande cineasta italiano, ao rodar suas biografias pensadas sobre grandes filósofos para a televisão italiana no gesto final de sua filmografia, foi dar inevitavelmente em Pascal, donde resultou mais um magnífico afresco de ideias, tensões cerebrais e curvaturas históricas da passagem do homem pela terra. Blaise Pascal (1972), o referido filme televisivo de Rossellini (que se inclui naquela categoria a que se poderia chamar documentário de ideias, onde estão igualmente Sócrates, 1970, Santo Agostinho, 1972, e Cartesio, 1974), começa na juventude da personagem, justamente no momento em que, enquanto ajudava meio burocraticamente a seu pai no escritório, a obscuridade de Desargues emerge no cérebro de Pascal não para mergulhá-lo em idêntica obscuridade mas para solucionar estas trevas e dar-lhes luz e transparência. É mais ou menos o que faz o cinema tão simples quanto profundo, tão objetivo quanto espiritual de Rossellini ao mergulhar suas câmaras nos universos dos grandes e complexos pensadores ocidentais; aclarar as lições das trevas, eis o que sempre foi o gesto cinematográfico de Rossellini, desde o começo e permaneceu intocável até sua derradeira obra, O Messias (1976), que tratou com naturalidade duma figura vulgarizada e massificada como Jesus Cristo.

Rossellini incluiu em seu roteiro a descoberta de Desargues por Pascal, suas inquietações metafísicas, suas dúvidas avançadas, os aspectos obscurantistas da sociedade seiscentista que o cercava, o encontro pouco amistoso com um contemporâneo mais velho e famoso, René Descartes (1596-1650), que depois seria retratado por Rossellini em Cartesio. Mas o momento supremo da arte de Rossellini em Blaise Pascal á a longa, densa sequência final em que se dá a morte de Pascal; antes dela, ligada a ela, a decrepitude física precoce de Pascal, sua agonia marcada; o êxtase místico atingido por Rossellini nestas cenas o reelevam à categoria de o mais profundo dos criadores jamais produzidos pelo cinema e as expressões da agonia de Pascal são tão belas, agudas e perturbadoras quanto as da agonia da irmã doente em Gritos e sussurros (1972), do sueco Ingmar Bergman, feito também por aqueles anos.

Se em algum momento o cinema me alcançou instantes de um prazer perfeito, o “puro prazer†a que se refere o crítico gaúcho Hiron Goidanich nominando alguns filmes de seu deleite, é no cinema de Rossellini (e Blaise Pascal é este exemplar característico) que topo esta situação. (Eron Fagundes)