Crítica sobre o filme "Che":

Wally Soares
Che Por Wally Soares
| Data: 28/08/2009
Até que demorou um pouco para um dos nomes mais influentes e icônicos da história ser levado aos cinemas de uma forma digna e completa. Ernesto ´Che´ Guevara estampa camisetas, é ícone de revolução e não existe uma alma viva que não saiba quem ele seja. Em 1969, uma tentativa de fazer uma obra biográfica sobre o homem resultou em fiasco (comercial e artístico), e em 2004 o brasileiro Walter Salles realizou o belo Diários de Motocicleta, que narra o trajeto de Che quando ainda era um jovem médico viajando pela América do Sul. É com Che, de Steven Soderbergh (Treze Homens e um Novo Segredo), que o personagem finalmente é retratado com a complexidade devida. Exibido em Cannes no ano passado, a biografia de quase cinco horas de duração enfrentou um desafio comercial, e foi consequentemente dividida em duas partes para seu lançamento internacional. A primeira, Che - O Argentino, chegou ao Brasil neste ano, e mostra que Soderbergh não só parece compreender claramente quem foi o homem por trás do ícone, mas revela uma sobriedade artística impressionante. O trabalho feito aqui é simplesmente maravilhoso.

Che - O Argentino inicia-se em 1964, nos Estados Unidos, quando Che surgiu depondo acerca da Revolução Cubana e criticando o imperialismo americano. Esses eventos "futuros" são intercalados com os de 1955, momento no qual Che conheceu Fidel Castro pela primeira vez, iniciando os planejamentos para o futuro desembarque das tropas em Cuba. A partir daí, o filme segue a figura de Guevara com extrema paciência e densidade, procurando retratar detalhes que vão desde a asma problemática do revolucionário, até seus envolvimentos diretos com a morte "justiceira" de diversos desertores. Em outras palavras, Che - O Argentino não mostra uma versão dos fatos, ele mostra "a" versão dos fatos, e deixa para a audiência tirar suas próprias conclusões e compreensões.

Talvez o aspecto mais fascinante de toda a obra seja o domínio que Soderbergh exerce sobre seu trabalho. Eis aqui um diretor que, vez ou outra, surge com um filme comercialmente bem sucedido. Esta estratégia de Soderbergh é brilhante, já que permite ao diretor intercalar trabalhos comerciais (que no seu caso, não deixam de ser ótimos) com trabalhos pessoais e sem aspirações econômicas. Só um diretor com tamanha credibilidade e resistência poderia ter feito um filme completo como Che. A primeira parte tem, sim, suas cenas de ação. Mas até elas são contemplativas e ancoradas no lírico. É um obra de arte contemplativa, poética e interminavelmente fascinante. Seja na sua construção genial da faceta de Guevara, seja na estrutura curiosa que abraça para contar a história dele.

Ainda tecnicamente virtuoso, Che surge como o primeiro filme a ser rodado na nova câmera Red One, usada pelo Soderbergh e pelo cinematógrafo Peter Andrews para resgatar o cinéma vérité, ou "cinema da verdade", mesclando um estilo documental com uma vertigem lírica poderosa. A bela edição junta-se à fotografia subjetiva para capturar longas tomadas em contra-ponto àquelas que focam os rostos e as ansiedades de seus personagens de perto. Tal método é usado com maior desenvoltura nas sequências que retratam Che nos Estados Unidos. Filmado em preto e branco, os segmentos denotam um estilo documental, que por sua vez traz consigo uma autenticidade digna de verdadeiras imagens de arquivo. Portanto, não parece ser Benicio del Toro (Coisas que Perdemos pelo Caminho) quem vemos por trás daquele preto e branco carregando consigo diálogos marcantes, aura instigante e trejeitos formidáveis, mas o próprio Ernesto ´Che´ Guevara, despido em celulóide. Del Toro, alias, é a verdadeira alma do projeto. Com sensibilidade, desenvoltura e verdadeira presença, Del Toro intensamente resgata os aspectos físicos do homem mas, mais importante, ele traz sua paixão. E assim, constrói um personagem que soa tão verdadeiro e autêntico, que faz transparecer a verdade. O que pode ser mais gratificante? Acompanhando Del Toro, Demián Bichir (Sem Notícias de Deus) surge com interpretação honrosa de Fidel Castro, enquanto papéis pequenos de Rodrigo Santoro (Leonera), Catalina Sandino Moreno (O Amor nos Tempos do Cólera) e Julia Ormond (Sob Controle) garantem um elenco coadjuvante imensamente satisfatório.

Em todos os poros, portanto, Che surge com alguma virtuosidade, alguma vitalidade e alguma emoção. A trilha sonora de Alberto Iglesias, por exemplo, agrupa todos os três fatores em um trabalho majestoso (e vale lembrar ainda da parte sonora impecável). Então, por mais longo que o filme possa acabar ser, e mesmo que possa surgir vez ou outra com cenas descartáveis, é uma obra não só digna, mas altamente valiosa. Tanto como cinema, quanto como análise histórica. É um belo filme sobre as transformações dos seres humanas, e sobre como um homem seguiu sua paixão acima de todos os custos. Como retrato da guerra, é cinema em estado sóbrio e singular. Longas e nervosas tomadas garantem uma imersão extraordinária, e Soderbergh surge então como um diretor simplesmente fenomenal.