Crítica sobre o filme "Fundo do Coração, O":

Eron Duarte Fagundes
Fundo do Coração, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 07/09/2009
O norte-americano Francis Ford Coppola teve lá seus delírios gigantescos, que sempre puseram a perigo a continuidade de sua filmografia. O fundo do coração (One from the heart; 1982) foi uma destas extravagâncias de concepção e realização que em sua época quase afundou a produtora do cineasta; para adquirir fôlego, ele rodou filmes de baixo orçamento, como O selvagem da motocicleta (1983); mas como uma criança deslumbrada com seu brinquedo, o cinema, Coppola não se conteve e voltou a pecar com o excessivo Cotton Club (1984), que liquidou com as esperanças de recuperação financeira da Zoetrope Studios.

Diante da visão de O fundo do coração, é de se perguntar como um realizador incrustado no seio da indústria cinematográfica pode propor uma narrativa de ritmo provocativamente irregular (não como falha, mas como característica) e que desmancha notavelmente os clichês do musical e do melodrama a que se refere não sem alguma ironia e perturbação. O fundo do coração traz o mais pessoal e antológico gosto de Coppola pelo romantismo feérico; embalado pela música, o filme é um circo de imagens, cores e sons. Falou-se em desacertos e exageros a propósito de O fundo do coração. O que de fato há é que Coppola filma com desesperada criatividade as bobagens sentimentais de sua história central; sua referência ao clássico dos clássicos da nostalgia cinematográfica, Casablanca (1942) (a cena do avião que alça voo rasante com o carro da personagem que deixou a mulher partir com outro é uma citação extraordinária e pessoal), que o húngaro Michael Curtiz dirigiu na Hollywood dos tempos dourados, não cai no ramerrão subserviente, porque em O fundo do coração o roteiro é mesmo um esqueleto distante daquilo que verdadeiramente interessa na tela de Coppola, o amor ao barroquismo das sensações cinematográficas.

Assumindo seu escapismo e a criação de um universo artificial que topa sua consistência dentro de si mesmo, O fundo do coração é a beleza fílmica em estado puro. E é bom salientar o prazer de reencontrar a juventude de alguns astros habituais nos filmes dos anos 80, como Terr Garr, Frederic Forrest, Nastassia Kinski e Raul Julia.

P.S.: Uma das sutis inovações que Coppola introduziu em sua rodagem onírica de O fundo do coração foi a inserção de algumas filmagens em vídeo-teipe (o que causa um borrão delirante da imagem, granulando-a de uma maneira especial), que na época começava a interessar aos cineastas como possibilidades formais do cinema (o vídeo-teipe é um ancestral do digital de hoje); lembremos que outro grande diretor de então, o italiano Michelangelo Antonioni, rodou seu O mistério de Oberwald (1982), inteiramente no formato de vídeo-teipe, passando depois para película, o que gerou estranheza na percepção de muita gente que via cinema naqueles anos. (Eron Fagundes)