Crítica sobre o filme "Duplicidade ":

Wally Soares
Duplicidade Por Wally Soares
| Data: 15/09/2009
Quando Tony Gilroy entregou, há um ano, Conduta de Risco, era inevitável consagrá-lo como a grande revelação do ano. Com uma direção imensamente segura e introspectiva, Gilroy filmou seu próprio brilhante roteiro com um frescor vívido. Até aquele momento, que lhe rendeu duas merecidas indicações ao Oscar, o cineasta era conhecido pelas suas adaptações dos livros de Robert Ludlum, dando origem à magnífica série de Jason Bourne. Em Duplicidade, Gilroy prova novamente que é um cineasta sóbrio e escritor brilhante. Em síntese, seu filme será uma obra difícil de ser aceita pelo público mais convencional, trazendo consigo uma estrutura atípica, diálogos técnicos e uma narrativa complexa em suas implicações da trama e as emocionais. No fim das contas, Gilroy se vê como o dono do projeto mais ousado em termos técnicos que assisti no ano. Provocando e enganando seu espectador até o fim da metragem, seu filme é pura manipulação. E uma totalmente imersa em um jogo deliciosamente inteligente. Para aqueles que estão dispostos, o filme é um espetáculo.

O filme gira em torno de Ray (Clive Owen), um agente da MI6, e Claire (Julia Roberts), da CIA. Claire o conhece em Dubai, em uma missão, e o leva para cama com outros intuitos. Cinco anos depois, Ray a reencontra e a questiona sobre o que houve. Ambos agora estão trabalhando para empresas grandes cujos empresários se odeiam. Em uma semana, uma das companhias vai revelar um novo produto multimilionário. Os dois agentes resolvem, então, armar um roubo, de olho no potencial do produto e em uma aposentadoria adiantada. Conforme Ray e Claire trabalham no jogo íntimo, a desconfiança surge como personagem ímpar, e o passado dos dois começa a vir a tona.

A trama de Duplicidade é construída de uma forma nada convencional. Os eventos não seguem uma cronologia linear e somos constantemente surpreendidos por revira-voltas. Esta abordagem mais cinematográfica e original de Gilroy insere ao longa um ar digno em aspectos diversos. Os filmes do gênero já estão cansados, e o desgaste seria inevitável. Na verdade, o centro de Duplicidade é uma história que já conhecemos com personagens usuais. Mas o tratamento de Gilroy à diálogo, narrativa, trama e condução fazem com que a película desvie de quaisquer déjà vu, inserindo a audiência em um clima sobriamente fresco. E Gilroy se diverte. O cineasta brinca com o espectador a todo momento. Os revira-voltas surgem para atiçar e nos desafiar, provocando questionamentos e muita frustração. E esse jogo mental pode fazer com que os trinta primeiros minutos do filme cansem. Mas para aqueles que estão dispostos à entrar na brincadeira e sabem se deliciar com uma história esperta quando esta é apresentada, não será difícil continuar assistindo Duplicidade com um largo sorriso no rosto e uma ansiedade palpável diante das resoluções que a trama pode (ou não) apresentar. Quando o desfecho da obra chega, a surpresa é deliciosa e terminamos satisfeitos. E é apenas na constatação final que almejamos atribuir ao filme toda a sua virtuosidade narrativa. Tudo aqui parece milimetricamente desenhado. É sofisticação pura.

Na alma de Duplicidade, está seu elenco. Bolando uma ótima química, Owen e Roberts parecem se divertir tanto quanto Gilroy, e criam personagens interessantes ao olho nu e densos diante da introspecção. Eles entram na brincadeira, esbanjam charme e talento, e direcionam seus diálogos com uma malícia simplesmente irresistível. Assistir estas duas estrelas jogando entre si por si só já valeria o ingresso. Mas o que traz à Duplicidade sua própria particularidade é a forma com que decide abordar seus personagens, que em qualquer outra empreitada teriam se limitado a serem estereótipos rasos. Aqui, eles questionam seus caráteres, olham pra dentro de si mesmos e sofrem por estarem apaixonados um pelo outro. Acompanhando a dupla, tem espaço de sobra para o sempre excelente Paul Giamatti brilhar e roubar a cena. Tom Wilkinson não mantém a mesma presença em pauta, mas quando surge, mostra a que veio. Os personagens da dupla abrem o filme em uma cena brilhante que os colocam à gritos e socos, em câmera lenta. E os dois são a síntese mais ácida e divertida das corporações bilionárias, atribuindo ao filme uma força coadjuvante certamente notável.

Quando se assiste à um filme como Duplicidade, é necessário apreciá-lo ao último fio de cabelo. Elenco, diretor e equipe parecem se divertir tanto fazendo a obra que é quase inevitável que você encontre divertimento também. Contanto que você entre na brincadeira, claro. Para extrair de Duplicidade toda sua desenvoltura como cinema e obra genial, é preciso tolerância artística e um olho clinicamente observador. Com isso, será inevitável se deliciar com a bela fotografia, a edição essencial, a trilha sonora fantástica, os diálogos incríveis e a forma curiosamente fascinante com a qual foi construído. A cena final é de uma beleza única. E é uma síntese completa do que o filme representa. Delicioso divertimento, é um filme do gênero refrescante e representa entretenimento de primeiríssima linha. Sua competência como cinema é irrefutável, e sua esperteza, inconfundível. Se deixe ser levado pelo furor textual do filme, e aprecie o que acontece quando um diretor pega Hollywood pelos chifres e a lança para longe. (Wally Soares – confira o site Cine Vita)