Antes de Hollywood e de um certo herói aracnídeo, o diretor Sam Raimi pertencia ao sujo e ao barato. Seu primeiro longa-metragem, “A Morte do Demônio”, já é uma espécie de cult classic graças aos valores cinematográficos que abraçava em sua concepção trash. Espírito este do cineasta que, ao longo dos anos, foi dando lugar à filmes mais rentáveis e, digamos, mais comportados em suas composições. Não tenho dúvida de que “Homem-Aranha” seja, de fato, uma bela saga orquestrada pelo cineasta (com as devidas ressalvas), mas é um tanto refrescante quando um diretor habituado aos orçamentos explosivos de US$200 milhões resolva voltar às suas raízes. E, com US$30 milhões no bolso, Raimi resgata o espírito dos anos em 80 ao reencarnar o mal de verdade no cinema contemporâneo. Diante dos filmes de terror cada vez mais decadentes que Hollywood vem produzindo (99% deles sequências ou refilmagens), Raimi arrasta a sétima arte para o inferno. E é um passeio delicioso.
Na história maléfica de “Arraste-me Para o Inferno”, conhecemos a jovem Christine Brown (Alison Lohman), funcionária do banco na área de empréstimos. Em um belo dia, Christine se vê dividida entre agraciar uma velha mulher com um empréstimo ou subir na carreira: ao rejeitar o pedido da senhora - que consequentemente a leva a ser despejada - Christine se vê literalmente amaldiçoada pela velha, que coloca sob ela uma maldição sobrenatural que à levará direto para o inferno. Até o demônio buscá-la, uma série de eventos lúgubres serão impostos sobre a malfeitora. Aterrorizada pelos espíritos do inferno, ela inicia uma busca implacável pela sobrevivência.
É verdade que, quando Raimi fez “A Morte do Demônio”, ele o fez com meros US$350 mil, ao passo que “Arraste-me Para o Inferno” se carrega em cima de US$30 milhões. Ou seja, apesar de ser uma bela homenagem ao cinema trash, é inegável que os efeitos visuais sejam mais polidos. Mas em momento algum Raimi perde o espírito e sempre preza pela criatividade na concepção de suas cenas. Seja nos movimentos de câmera sempre geniais ou no utilizo admirável da iluminação, é um cineasta que sabe o que é fazer cinema e, mais que tudo, é especialmente competente na construção do terror. Ao lado do instrumentalista ótimo que é Christopher Young, constrói um clima especialmente atmosférico na exemplificação pura do horror. No caminho, não deixa de lado o senso de humor, habitual em produções deste gênero. E é difícil articular terror e humor sem que estes se sobrepõem, mas Raimi almeja a autenticidade com bastante facilidade. “Arraste-me Para o Inferno” apresenta sim ocasionais momentos irregulares e definição peculiar, mas são falhas que, no fim das contas, apenas adicionam à imperfeição louvável da obra como entretenimento, em uma declaração de amor genuína ao cinema trash.
Célebre do cinismo, o teor da obra se torna um conto de moralidade dos mais excitantes. É neste elemento importante articulado pelo roteiro que eleva o filme do mero terror trash, o cercando de um senso palpável de mistério e terror não só diante do sobrenatural, como também ao encarar a natureza humana. Neste aspecto, Christine Brown surge como uma das heroínas (?) mais interessantes que o gênero nos presenteou em muito tempo. Dotada de complexidade, a personagem é muito bem interpretada por Alison Lohman. De início, a atriz joga com a inocência e seu rosto adorável, mas aos poucos começa a botar as cartas na mesa, ao passo que a moralidade da personagem começa a ser trabalhada pelo texto. É surpreendente, então, quando vemos aquela inocente garotinha cogitar arriscar a vida de outras pessoas. Mais inesperado ainda é a ira que a envolve no clímax do filme, que por si só merece todos os elogios possíveis pela execução infalível.
”Arraste-me Para o Inferno” é, então, um ótimo filme do gênero. E o cinema contemporâneo estava carente de algo como o que Raimi criou aqui. O que precisa ser colocado em pauta, porém, é quanta virtuosidade o público do século XXI poderá enxergar nele. É perceptível que, no cenário atual, o longa-metragem exemplar de Raimi possa ser considerado datado, ou talvez até mesmo tosco para as massas. Algo que o cineasta compreende com avidez e, devo dizer, inteligência. Assim, ele nutre seu filme não só de uma aura beirando o absurdo com suas sequências nauseantes e grosseiras, mas procura adaptar a obra ao cinema atual. E faz isso sem cair em contradição. O resultado é feio, angustiante, risível (diversamente) e honrável. Nem todas as peças do filme podem agradar, e isso vai depender da abordagem de cada indivíduo. Mas o valor de “Arraste-Me Para o Inferno” como cinema é irrepreensível.
Quando o desfecho arrebatador do filme chega, já estamos transtornados pelos eventos bizarros que precederam o momento, em incidentes que incluem até um animal possuído. Não tente segurar o riso, “Arraste-me Para o Inferno” quer sim levá-lo ao inferno e botar um medo inexorável em teu espírito, mas quer também fazer você divertir. Raimi compreende o valor da diversão e sabe exatamente o que está fazendo em todo quadro deste filme. Se ele se excede em momento e outro, é inegável, mas no fim das contas é um trabalho muito bem composto e totalmente eficiente no que se propõe à realizar. Entre na brincadeira, se deixa ser levado para os confins obscuros do mal (incluindo o humano) e seja totalmente e irrevogavelmente chocado por um dos desfechos mais corajosos dos últimos anos. (Wally Soares)