Depois das concessões às bobagens comerciais de Se eu fosse você 2 (2002), o cineasta brasileiro Daniel Filho volta a fazer um cinema mais empenhado em Tempos de paz (2009), roteirizado por Bosco Brasil a partir da peça Novas diretrizes em tempos de paz, escritas pelo próprio Bosco e que teve nos papéis centrais em suas apresentações entre 2000 e 2004 os mesmos atores utilizados por Daniel em seu filme, Tony Ramos como o ex-chefe da polícia política de Vargas embutido num cargo burocrático no setor de imigração do governo e Dan Stulbach como o polonês que chega ao Novo Mundo corrido pelos horrores da guerra na Europa. É a habilidade de Daniel como encenador que permite a uma narrativa muito conversada e que exige uma precisão teatral dos intérpretes chegar a um ponto cinematográfico que conquista a observador; é também o senso de cinema de Daniel (que ele não perdeu, apesar de seus longos anos de convívio com a televisão) que equilibra o dueto desigual das interpretações, um burocrático Tony Ramos (parece que ele se sente mais à vontade nas cômicas tolices de Se eu fosse você) e um extraordinariamente criativo Dan, num dos desempenhos marcantes do ano cinematográfico por aqui.
Pouco a pouco, o que se estabelece ao longo da narrativa de Tempos de paz é uma reflexão sobre as ligações do horror nazista dos anos 40 no Brasil e na Europa. O polonês que pensa que viu tudo na guerra nazista europeia e chegará a uma terra onde uma língua de poucos encontros consonantais simulam os cantos dos passarinhos nas florestas, logo descobre que o homem que deverá dar-lhe o visto de entrada no país foi um torturador tão repugnante quanto os alemães que dizimaram as relações do polonês na Europa. Mas o conflito de personalidades entre o ex-torturador brasileiro e o ex-torturado europeu nunca é estereotipado ou maniqueísta; o mergulho em sensações obscuras desfaz qualquer linha divisória.
Demais, é o próprio Daniel quem interpreta um ex-torturado vítima do ex-torturador brasileiro vivido por Tony. No final, ambos vão achar uma estranha conciliação na encenação teatral armada pela personagem de Dan, no cenário burocrático do setor de imigração; assim como uma composição pianística aproxima nazista e judeu em O pianista (2002), do polonês Roman Polansky, em Tempos de paz é o teatro que vai unir os confrontos de dois oponentes num regime de força. Como o ator-personagem de Mephisto (1981), do húngaro Istvan Szabo, a criatura de Dan põe a questão do teatro, para que serve o teatro, a quem serve o teatro, em tempos duros e repressivos.
No fim do filme, Daniel faz uma extensa dedicatória a várias figuras de imigrantes europeus que desembarcaram no Brasil fugidos dos horrores nazistas. E todas as figuras citadas são espíritos fundamentais da construção cultural brasileira; não se pode hoje pensar nossa existência como nação sem elas. Então, Tempos de paz, ligando os horrores de lá e de cá, acaba falando destes brasileiros que se desgarraram de sua nacionalidade de origem (apátridas) e que se enquadram nesta categoria tão especial de brasileiros-estrangeiros. (Eron Fagundes)